domingo, 18 de outubro de 2015

A barra da Figueira está assim por vontade dos homens

O meu Amigo Manuel Luís Pata, farta-se de dizer o seguinte: "há muita gente que fala e escreve sobre o mar, sem nunca ter pisado o convés de um navio".
Em 2003, lembro-me bem da sua indignação por um deputado figueirense - no caso o Dr. Pereira da Costa - haver defendido o que não tinha conhecimentos para defender: "uma obra aberrante, o prolongamento do molhe norte".
Na altura, Manuel Luís Pata escreveu e publicou em jornais, que o Dr. Pereira da Costa prestaria um bom serviço à Figueira se na Assembleia da República tivesse dito apenas: "é urgente que seja feito um estudo de fundo sobre o Porto da Figueira da Foz".
Como se optou por defender o acrescento do molhe norte, passados 12 anos, estamos precisamente como o meu velho Amigo Manuel Luís Pata previu: "as areias depositam-se na enseada de Buarcos, o que reduz a profundidade naquela zona, o que origina que o mar se enrole a partir do Cabo Mondego, tornando mais difícil a navegação na abordagem à nossa barra". 
Por outro lado, o aumento do molhe levou, como Manuel Luís Pata também previu, "ao aumento do areal da praia, o que está a levar ao afastamento do mar da vida da Figueira". Porém, e espero que isso seja tido em conta no disparate que é a projectada obra a levar a cabo pela Câmara Municipal da nossa cidade, "essa área de areia será  sempre propriedade do mar, que este quando assim o entender, virá buscar o que lhe pertence".

O projecto do Engº. Baldaque da Silva
Existe um estudo sobre como melhorar o Porto da Figueira. Quem estiver interessado pode consultá-lo na Biblioteca Municipal, num dos jornais locais de 1914.
Esse precioso e importante trabalho, refere a construção de um "paredão a partir do Cabo Mondego em direcção ao quadrante sul"
Esse projecto, da autoria do Eng. Baldaque da Silva,  para a construção da obra de um "Porto Oceânico", foi aprovado na Assembleia de Deputados para ser posto a concurso, o que nunca aconteceu, pois foi colocado numa gaveta. 
Neste momento, como as coisas estão na enseada de Buarcos, já não deverá ser possível colocar ali o "Porto Oceânico", uma vez que as construções ocuparam os terrenos necessários ao acesso àquilo que seria um porto daquela envergadura.
Porém, o estudo do Eng. Baldaque da Silva poderia servir de base para a construção de um paredão com cerca de 1 800 metros, que serviria para obstruir o acesso das areias à enseada de Buarcos, traria benefícios consideráveis: acabaria o depósito de areias na enseada, barra, rio e praia; ficaria protegida a zona do Cabo Mondego e Buarcos, evitando a erosão das praias da zona e os constantes prejuízos na Avenida Marginal; serviria de abrigo à própria barra, quando a ondulação predominasse de Oeste ou O/N.

A sustentabilidade do porto da Figueira da Foz
Um dia destes, tive acesso a uns sub- capítulos duma tese do arquitecto figueirense Manuel Traveira, sobre a questão dos molhes.  
Em 2011, na cerimónia de inauguração das obras do prolongamento do molhe norte, o Engenheiro José Luís Cacho, então Presidente da Administração do Porto da Figueira da Foz, sublinhou que “o porto da Figueira da  Foz, que os pessimistas de serviço já viam com certidão  de  óbito  passada,  estava,  afinal,  pujante,  de  boa  saúde  e,  agora,  com  estes avultados investimentos, mais preparado para enfrentar os desafios que se avizinham”.
No entanto, em 2013, o mesmo Engenheiro José Luís Cacho já  demonstrava uma grande preocupação com a futura sustentabilidade do porto comercial. 
"A quebra de receitas da administração do porto, devido à redução das taxas portuárias, é um facto preocupante", considerou, referindo ainda que tal situação é agravada por um "aumento futuro da despesa com as dragagens".
Por sua vez, o Dr.  Hermano  Sousa,  Presidente  da  Comunidade  Portuária  da Figueira da Foz, referia que “a capacidade instalada, de 3 milhões de toneladas/ano, está longe de ser atingida. Apesar da admirável evolução, não podemos dormir à sombra destes resultados..."  Do seu ponto de vista, para  maximizar  a  utilização  do  porto, "era preciso consolidar o estado da barra, fixando o calado, ao longo de todo o ano, primeiro  nos  6,5  metros  e,  posterior  e  idealmente, nos  7,5  metros, já  a pensar  nos  navios  de  nova  geração,  que  estão  agora  a  sair dos  estaleiros  e chegarão em breve ao  mercado".
Estudar e entender a dinâmica que cria o assoreamento de inverno  é um dos requisitos para que o calado do porto figueirense possa receber embarcações de grande porte. A solução apontada, porém, tem sempre passado  por dragagens, que custam muito dinheiro.
Imagem, entretanto, cedida pelo arquitecto Manuel Traveira

Bypass 
O bypass  proposto  pelo  movimento  SOS  Cabedelo,  poderia  ajudar  a atenuar  as sucessivas  dragagens  que  o  porto  tem  vindo  a  efectuar e, ao mesmo tempo, atenuar os efeitos da erosão a sul.
Manuel Traveira na elaboração da sua tese consultou  os  relatórios que acompanharam  as  obras  do  porto  da  Figueira  da  Foz  desde  1953 até 1972, elaborados  pelo  LNEC. Solicitou, também, os  estudos mais recentes  na Biblioteca  do LNEC,  mas  o  acesso público está  vedado por lei pelo período de 20 anos a contar da data  da  sua  realização.  Apesar  destes  condicionalismos, a  análise  dos  relatórios  do “Estudo em Modelo Reduzido do Porto da Figueira da Foz”, demonstraram-se bastante esclarecedores para a compreensão das dinâmicas de assoreamento a que o porto está sujeito.

1º  Fase  de  estudos,  1953-1961  
Segundo Manuel Traveira, até à construção dos molhes exteriores  do  porto comercial (1960-1966), os  estudos  do  LNEC  incidiram  a  sua  atenção  na análise  do regime fisiográfico  desta  zona  da  costa  portuguesa, ensaiando em  modelo reduzido  o esquema de  obras inicialmente proposto na procura do esquema ideal para as obras exteriores do porto.
Quanto ao estudo fisiográfico desta zona, concluiu-se que:
1-  A  direcção  da  ondulação  mais  frequente  e  mais  forte,  é  proveniente  de  oeste  e noroeste.  
“O  Laboratório  realizou  o  traçado  dos  planos  de  ondulação  […] mostraram que  […]  o seu rumo  é para norte do W  (oeste)  e apenas raramente, para  o  sul  daquela  direcção.  Do  mesmo  modo  se verificou  que  as  amplitudes mais fortes correspondem a rumos entre o W (oeste) e o NW (noroeste).”
2-  As  areias  que  causam  os  problemas  de  assoreamento  da  foz  do  Mondego  são provenientes  maioritariamente  do  mar.

O aumento da praia da Figueira
Já em 1958, antes do início das obras dos molhes, o LNEC  antevia  o  que posteriormente se veio a comprovar: o  enorme  aumento  da  praia  da Figueira da Foz devido à construção do molhe norte, uma vez que funciona como uma barreira ao forte transporte de areias que se faz sentir ao longo da costa de norte para sul.   
O excessivo crescimento da praia de banhos da Figueira, em todas as soluções ensaiadas, tornou-se altamente prejudicial à manutenção de boas profundidades no canal da barra, referindo-se que “no caso da Figueira da Foz, qualquer canal que venha a ser dragado, e de que resulte uma secção molhada muito superior à que actualmente existe, não se manterá logo que as areias comecem a contornar o molhe norte".
Este  fenómeno  de  assoreamento  do  estuário  é  facilmente  compreendido através  da análise  da  passagem  de  areias  que  ocorre  da  praia  a  norte para  a  praia  a  sul  do  rio Mondego e pela explicação de como se forma o banco da barra  (banco de areia que se forma em frente à Foz do rio Mondego, altamente prejudicial para a navegabilidade do porto)

Passagem de areias de norte para sul do rio
Na enchente as areias entram dentro do estuário donde são em parte ou na totalidade  expelidas  na  vazante  para  fora  do  estuário  depositando-se  a uma distância  maior  ou  menor  consoante  o  coeficiente  da  maré  e  a amplitude  da vaga. Só após o banco da barra ter atingido uma certa cota é que se começa a dar a passagem para as praias a sul. Neste caso, as areias expelidas pela vazante para o banco da barra caminham sob a acção das correntes de maré e da vaga para a praia a sul.
Outra imagem, entretanto, cedida pelo arquitecto Manuel Traveira, a quem deixo o meu agradecimento.

Uma  vez  que  a  areia  tenha  contornado  a  testa  do  molhe  norte começará a caminhar  ao  longo  da  face  interior  do  molhe. Forma-se, assim, um princípio  de cabedelo  que  se  vai  pouco  a  pouco  desenvolvendo  até  que as correntes  de vazante começam a erodi-lo e a transportar o material arrancado para fora das testas do molhes depositando-o na zona do futuro banco da barra.
Por  razões desconhecidas para Manuel Traveira,  eventualmente  explicadas  pelo conteúdo  de outros  estudos  aos  quais  não  teve  acesso,  a  construção  dos molhes  não  seguiu importantes  recomendações  apontadas  pelo  LNEC.  
A saber: o  traçado  curvo  do  molhe norte com a sua testa no alinhamento do antigo molhe sul (molhe velho), possibilitando uma maior protecção do estuário contra a penetração da vaga no seu interior; o molhe sul recuado (250  metros)  em relação ao molhe norte com  vista  a  facilitar  a  transposição natural das aluviões da margem norte do rio para as praias a sul; a construção de uma guia submersa no prolongamento do molhe velho, a fim de assegurar um traçado mais regular e com melhores profundidades.

2º Fase de estudos, 1968-1972  
Durante as obras exteriores dos molhes concluídas em 1966,  assistiu-se  a  um rápido  crescimento  da  praia  da  Figueira, o  que  levou  ao assoreamento do anteporto  e necessária acção de dragagem já em 1967. Confirmadas as previsões do LNEC de que as obras exteriores por si só seriam incapazes de resolver o problema,  este  realizou,  em  1967,  uma  reunião  entre engenheiros  da  Direcção  dos Serviços Marítimos (DSM) com o objectivo de procurar conhecer as possíveis soluções que a DSM previa encarar para a resolução do principal problema do porto da Figueira da Foz: o seu assoreamento a partir do mar
Nesta reunião, ainda de harmonia com o estudo de Manuel Traveira,  foi possível constatar que o caudal sólido litoral tinha assumido valores muito superiores aos dos estudos realizados até à construção dos molhes, e que seria urgente precisar esses valores com “a certeza antecipada  de  que  serão  elevados, pelo  que  este  problema  se  irá  sobrepor  a  todos  os demais que condicionam a exploração do porto.”
Como possível solução do problema foi considerada novamente a possibilidade de “instalação  de  uma  estação  de  bombagem  de  areias  com  conduta  de repulsão submersa, conjugada com um quebra-mar paralelo à praia, em posição a definir." Como a transposição artificial da totalidade do volume sólido afluente à praia da Figueira deveria conduzir a encargos dificilmente comportáveis pela exploração  do porto,  foi  posta  em  evidência  a  necessidade  de  conseguir  que parte da transposição se faça naturalmente por acção da onda e das correntes de maré.  Foi,  porém,  reconhecido  que  a  orientação  actual da  entrada  do  porto  é muito pouco propícia a esta transposição natural, pelo que se admitiu a hipótese de a alterar por um prolongamento do molhe norte.”

Porque não foi seguido o rumo que o LNEC sugeriu?
Devido à impossibilidade de aceder aos estudos mais recentes sobre o Porto Comercial, pelas razões anteriormente mencionadas, não foi possível a Manuel Traveira conhecer a razão pela qual, tanto nas obras interiores, realizadas na década de 1980 e 1990 do século XX, como nas obras exteriores do prolongamento do molhe norte iniciadas em 2008, se tenha optado por rumos diferentes dos sugeridos no plano geral de melhoramentos realizado pelo LNEC.
Todavia, segundo o SOS Cabedelo, o relatório do Grupo de Trabalho do Litoral (GTL) prevê a adopção de sistemas de transposição sedimentar" na barra da Figueira - 1,1Mm3 em cada ano - um circuito altenativo à passagem das areias na frente da barra que provocam a rebentação na entrada do Porto Comercial. 
O Programa da Orla Costeira (POC), agora em discussão à porta fechada, em vez de avançar para a solução refugia-se na intenção das avaliações custo-benefício agravando o prejuízo a cada dia que passa.

Actualização às 10 horas e 18  minutos.
Acabei de inserir duas imagens que me foram disponibilizadas pelo Arquitecto Manuel Traveira, a quem aproveito para agradecer.
"É urgente demonstrar às pessoas que existe um problema muito grave mas que tem solução. Basta de tanta mentira."
De realçar o papel deste figueirense nesta importante e cada vez mais urgente missão.

3 comentários:

Miguel Mattos Chaves /PhD disse...

Meu caro Senhor António Agostinho,
Quero dar-lhe os meus sinceros parabéns e dirigir-lhe as maiores felicitações pelo verdadeiro "Serviço Público" de enorme qualidade que prestou a todos os Figueirenses (naturais ou do coração) com a publicação deste texto.

Desde já aproveito para o Convidar a estar presente e participar no DIA 31 de MAIO de 2019 numa "Tertúlia Figueirense" cujo Tema será: "O Porto da Figueira da Foz - quais as suas características e possível futuro"; Hora: 21h30m -Local: Hotel Wellington.

É um tema demasiado importante para ser discutido apenas nos "gabinetes".

Bem-Haja pela sua enorme e qualificada contribuição através da publicação deste texto que recomendo a todos que leiam.

Saudações cordiais - Miguel Mattos Chaves

Unknown disse...

perfeito parabens


Bruno Miguel disse...

Excelente post . obrigado