«... urge ocupar a liberdade. Já é óbvio que, nas eleições legislativas de 30 de Janeiro, o voto no «arco da governação» constituirá a única opção amplamente apresentada como responsável, ainda que tenha sido esse «arco da governação» a criar condições restritivas de governabilidade que esgotam qualquer solução democrática para lá dos seus horizontes gestionários e estultos.
Se os combates pela igualdade são o passado e o presente dessas esquerdas, importa levar os combates pela liberdade aos espaços monopolizados por quem se diz guarda e vigilante da liberdade, começando pela disputa da hegemonia que o liberalismo ainda mantém sobre os sentidos e possibilidades da liberdade. Se o 25 de Abril foi, é e será o Dia da Liberdade, a pressão pandémica convida-nos a contestar o liberalismo, a invadir os seus domínios protegidos, a expor e erodir as suas hierarquias implícitas. Com ferramentas cristalizadas nos combates intelectuais da Guerra Fria, o liberalismo, incluindo as variantes portuguesas, não se coíbe de tecer considerações moralistas sobre a falsa equivalência entre as esquerdas inconformadas e a extrema-direita. Como bons sacerdotes seculares, os visionários do liberalismo recorrem constantemente à cartilha aprendida nos seus espaços protegidos...
O poder do fundamentalismo de mercado continua a ser notório: o mercado resolverá o problema; o mercado determinará a melhor solução; a concorrência é o mecanismo adequado para solucionar os problemas históricos do país. A reivindicação de uma existência digna, assente na fruição de um direito fundamental como a soberania sobre o tempo de que dispomos — um direito ainda mais precioso no mundo pandémico —, é vista como dislate filosófico ou loucura política. Levar o combate pela liberdade ao trono dos seus autoproclamados guardiães e vigilantes significa exigir a sua prestação de contas.
Afinal, de que liberdade falam? Do direito à contratualização de qualquer relação humana? Do direito à venda do tempo em condições coercivas? A reivindicação do direito ao tempo e da soberania sobre a finitude, em tempos pandémicos, é ainda mais uma orientação à esquerda. É por essa razão que as lutas pela habitação digna, pela mobilidade, pela justiça climática ou pela igualdade interseccional são hoje tão relevantes como a dignidade salarial. Em todos estes domínios, fruir do tempo de que precisamos para aquilo que quisermos significa contestar conformismos lógicos e rotinas opressivas. Temos direito à fruição do nosso tempo em liberdade. Também por isso, o problema que se colocará nas eleições do próximo dia 30 não será o da orientação. As esquerdas inconformadas mantêm, na intensa variedade dos seus projectos emancipatórios, visões plurais das orientações que as norteiam. A imaginação e a tenacidade não são recursos escassos e as esquerdas inconformadas não precisam de promover concursos internacionais ou competições com prémios chorudos para imaginar tenazmente. O problema será, em vez disso, o da clareza.
Não é claro, por agora, para muitos, que as lutas pela gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou do ensino superior sejam lutas pela liberdade. Mas são. Levar o combate pela liberdade às zonas sacrificiais e às pessoas sacrificadas pelo ultraliberalismo, forçando os cães de guarda de uma liberdade mirrada a defender-se, implica uma clarificação. O apego colectivo que continuamos a ter aos grandes projectos de libertação civilizacional, como o SNS ou a Segurança Social — malgrado a sua incompletude, os seus defeitos, as suas ineficiências — mostram como esses projectos só podem ser vistos como armas de servidão por blocos históricos concentrados em impedir que a liberdade seja um bem verdadeiramente comum. A estratégia é evidente e eficaz: continuam (e continuarão) a insistir na tese de que as suas ideias só não produzem uma utopia porque não se levam à sua conclusão final. Essa é a essência do fundamentalismo de mercado. No caminho para 30 de Janeiro, voltaremos a ouvir comparações pífias com a Irlanda ou com as repúblicas bálticas. Voltaremos a ouvir falar das «reformas» do «sistema» nacional de saúde. Ouviremos falar de liberdade sem que nos expliquem como se viverá essa liberdade determinada pelo tamanho da carteira accionista. É a especialidade do ultraliberalismo tardio. Compete às esquerdas inconformadas disputar esse espaço. A recusa foi um começo.»
Luís Bernardo, Ocupar a liberdade e ganhar o tempo, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Dezembro de 2021.
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