quarta-feira, 4 de março de 2015

JOSÉ AFONSO – Fome e Sede de Justiça

Até ao fim da adolescência, eu ia regularmente à missa, assistia ao Santo ofício, confessava-me. Hoje passa-se algo como um regresso às origens, não porque me tenha tornado de novo católico praticante, evidentemente, mas percebo que no fundo tenho uma concepção religiosa do universo. Vi, um dia destes, «O Evangelho Segundo São Mateus», de Pasolini, e fiquei perturbado. E estou a ler autores como S. João da Cruz e S. Francisco de Assis. Há uma espécie de reencontro com os ensinamentos de Cristo, não o Cristo institucional, o eclesiástico da minha infância, mas o Cristo dos que têm fome e sede de justiça...”
Entrevista a José Afonso, in «Expresso», 15/6/85


Após o tributo que dediquei ao José Afonso na semana passada, fui incentivado, por várias pessoas, a escrever algo mais relacionado com este exemplar cidadão.
A ideia que me ocorreu e que sempre inquietou o José Afonso, desde a célebre canção dos vampiros de 1963, era de facto, a necessidade de mais justiça social.
Por essa mesma altura, curiosamente, do outro lado do Atlântico, também Martin Luther King lutava pela justiça e semeou o seu sonho (“I have a dream”…).
Este combate, tão caro a José Afonso, 41 anos após o 25 de Abril está incompleto, pois, apesar de inegáveis avanços, registam-se, infelizmente, grandes retrocessos.
José Afonso, hoje, teria motivos de sobra para cantar e denunciar quem são os verdadeiros vampiros. Eles têm cara e têm rosto! Estes vampiros irão agradecer, dentro de menos de um ano, aos súbditos que em Portugal fizeram o seu jogo, à custa do empobrecimento da população, da privatização de sectores - chave da economia e da destruição de eixos sociais do Estado.
José Afonso, se fosse vivo, denunciaria a vergonha que é a disparidade dos valores das reformas quando comparadas com as dos que, por trabalharem cerca de dez anos, obtêm reformas antes dos 50 anos, de valores pornográficos, para cima de 7.000€ – que o diga a presidente da Assembleia da República…
A larga maioria dos portugueses, pessoas que trabalharam uma vida inteira, obtém reformas miseráveis inferiores a 300,00€. Isto é inaceitável num país que se diz democrático… É também intolerável que cerca de 2 milhões de portugueses vivam na pobreza.
Em contraponto, os privilégios da classe política são denunciados nas redes sociais, e criticados nas tertúlias de café, aparecem exibidos nos mails que recebemos e enviamos aos amigos…mas, não houve, até ao momento, um político que, de forma frontal tenha dito: ISTO NÃO PODE SER!
Os partidos do bloco central é o que se sabe…protegem-se carinhosamente uns aos outros, até porque - os principais chefes - frequentam os mesmos clubes secretos, onde cozinham as negociatas e esquemas de alternância de lugares nas administrações dos bancos e empresas: “é o agora vais tu, depois vou eu…e a seguir vais tu mais eu”.
José Afonso, se fosse vivo, diria que a política não existe para a prossecução de interesses particulares, diria, pelo contrário, que é uma arte nobre que deve prosseguir o interesse geral.
José Afonso, já em 15/06/1985, na entrevista dada ao Expresso referia que:
“…há uma data de gente que vive melhor do que antes do 25 de Abril, mas à custa de clientelismos partidários e favores políticos que não afirmam propriamente os trunfos dum regime. (…)

Trinta anos passados, infelizmente, o panorama agravou-se, aumentou o carreirismo, com escolas de formação gratuitas nas juventudes partidárias, cuja condição para subir na hierarquia do partido é dizer “Yes” ao chefe superior, seja ele um dirigente de uma concelhia ou de uma distrital…
Os partidos do arco da governação estão-se “marimbando” para os reais problemas dos cidadãos. A sua primacial função é dar emprego aos “boys e girls” que exibam os respectivos cartões, sejam eles laranjas, rosas ou azuis…pouco importa.
José Afonso, em Junho de 1985, já se queixava do mesmo…bastará lermos este excerto:
“Sabemos hoje que os programas de partidos, as promessas eleitorais, a igualdade dos cidadãos perante a lei, o parlamentarismo, … são armadilhas de uma imensa minoria que vive luxuosamente à custa de uma imensa maioria. Por outro lado, embora haja partidos que se aproximam mais dos interesses dos trabalhadores e outros que são contra esses interesses, a verdade é que a escolha entre os partidos A, B ou C acaba por não oferecer uma alternativa de fundo aos privilégios de Estado uma vez que todos eles se movem segundo a mesma lógica que cria um fosso entre o cidadão comum e os senhores do Poder…”
O Zeca deixou-nos, na sua curta existência de 58 anos, a ideia de que “há sempre outro amigo também”. Poderia ser uma pessoa, uma simples ideia, podia ser um combate, mas sempre pela liberdade, sempre pela justiça social!
Que venham mais cinco, mais cem, mais mil ou um milhão…! Nós somos os teus cantores!

Post Scriptum: um agradecimento especial para uma pessoa que me incentivou a escrever estas linhas.

Luís Ramos Pena  

3 comentários:

Anónimo disse...

O JOSÉ AFONSO NUNCA FOI TÃO ACTUAL COMO HOJE, FACE AO PANORAMA POLITICO-PARTIDÁRIO EXISTENTE.

Luis disse...

Filho do sistema de Salazar. Acabou o tacho do pai e mudou de pensamento. Há mais.

A Arte de Furtar disse...

José Afonso a força das palavras de um homem comprometido.
Sejamos a formiga que ruma em sentido contrário.
Intemporal!