sábado, 4 de abril de 2020

Os ‘velhos’ e o coronavírus

GUIDA VIEIRA
"Nunca ouvi falar tanto nos “velhos”, porque das “velhas” nem se fala.
Devem ficar isolados se não quiserem morrer mais depressa. Não devem receber visitas, nem dos filhos/as, nem de outros familiares, porque podem ser contaminados por estes.

Não devem sair à rua, a não ser para realizar pequenas tarefas, mensais, ou pontuais, se não quiserem ficar contaminados pelas pessoas que não estejam a, pelo menos, dois metros de distância.

Que não se podem sentar nos banquinhos das ruas onde passavam muitas horas a “matar” a solidão, a ver as pessoas a passar, ou, então, a jogar às cartas para “matar” o tempo e conviver ao ar livre, porque podem apanhar o vírus.

Que não podem ir ao cais olhar o mar e sonhar com os seus amores ali vividos, ou com as viagens que fizeram, ou desejaram fazer, porque é perigoso.

Que são olhados de lado, como se fossem “bichos” raros, se por acaso ainda tiverem força para fazer uma pequena caminhada nos arredores da sua habitação.

Que não podem ir ao café conversar, sobre tudo e sobre nada, mas falar, rir e brincar com os seus amigos antes de fazerem o almoço, ou mesmo tomar apenas um café após este.

Que não podem ir comer a sopa, acompanhada de um “pãozinho”, que vários restaurantes disponibilizavam com todo o cuidado e atenção.

Que não podem apanhar o sol que os aquece, sentir o vento nos cabelos, dar que fazer às pernas, para que as mesmas não fiquem ainda mais frouxas.

Que não podem escolher uma peça de roupa, uns sapatos, um utensílio de que precisem, porque o que tinham se avariou e não sabem encomendar pela internet – a maioria nem sabe o que é.

Estes “VELHOS” estão cheios de medo. A sua solidão é a pior agonia que lhes podia acontecer. Vivem aterrorizados com as notícias, que dizem que as mortes devido ao coronavírus são, na sua maioria, de velhos como eles.

Alguns já não suportam estar sós. Tentam furar as proibições e são logo jogados para a fogueira pelos julgadores destes tempos. “Estes velhos deviam era estar em casa. São uns tontos, uns palermas, e são eles que nos estão a infetar com a sua irresponsabilidade. “Vai para casa velho de m...”...

E os velhos, por serem mais frágeis, por já terem outras patologias, de “velhos”, mesmo se sentindo ofendidos, lá vão para a sua solidão, chorando a mesma, como sempre o fizeram, só que agora muito mais sós e mais tristes.

Já é demasiado arrasador estar sempre a ouvir, a ler e a ver nas notícias, que são os velhos que morrem mais devido a este vírus, o que me tem levado a pensar, muitas vezes, na razão da sua letalidade nesta fatia da população.

Senhores governantes, em nome dos velhos, sobretudo dos que não têm voz, ou lobbies poderosos que os defendam, percebam o que leva um velho a “furar” o isolamento obrigatório e não venham ameaçar com multas penalizadoras a quem, de vez em quando, comete uma “infração”. Lembrem-se que a liberdade que os velhos conquistaram foi o maior instrumento contra a sua solidão, e é isso que está em causa e que os faz sofrer mais.

A nós, os “velhos” destes tempos, vamos ter que nos sacrificar, mais uma vez, para nos voltarmos a encontrar e podermos nos beijar e abraçar muitas vezes, mas um pouco mais de respeito, e de sentido de humanidade, não faz mal a ninguém.

PS: escrevi de propósito “velhos” no masculino, porque é assim que se ouve. As “velhas” nem são faladas... Sabe-se lá porquê?..."

1 comentário:

Maria João Brito de Sousa disse...

Sou uma velha destes tempos. O estatuto foi recentemente adquirido, mas não deixo de ser uma velha. Sem aspas.

Vejo mal - cataratas... - por isso evito comentar, mas ocorreu-me lembrar, a outros eventuais leitores, que estamos num grupo de risco, mas somos nós quem corre o maior risco de sermos infectados. Pela extrema agressividade que o SARS- CoV-2 tem demonstrado para connosco, dificilmente se poderão deparar com velhos assintomáticos. Não! A nós, velhos, o vírus ataca a matar; a pneumonia é grave, certeira e exuberante na sua manifestação...


Já que as velhas não são faladas - talvez por serem muito ligeiramente menos vulneráveis do que os velhos, segundo as estatísticas - aqui ficam as palavras de uma velha que (ainda) fala.


Muita força para todos, novos e velhos!