quarta-feira, 29 de abril de 2020

O milagre Isabel Jonet...

Deve viver do vento e do ar.  "Não ganho um tostão há 27 anos. Sou voluntária, é quase uma missão de vida." 

Portugal padece de uma genética incapacidade nacional: a de conseguir construir uma sociedade evoluída seja a que nível for - cientifico, técnico, cultural, social ou económico.
Em 1992, o então ministro do Emprego Silva Peneda assinou, diante de todos os sem-abrigos de Lisboa que frequentavam a Sopa dos Pobres, a criação - com a ajuda da Igreja - de um Banco Alimentar contra a Fome. Deu verbas avultadas (7,5 milhões de euros aos preços actuais) e prometeu que tudo iam fazer para acabar com aquela realidade. Veja-se o video de arquivo da RTP. 
Passaram quase 28 anos. Agora, é o Presidente da República que faz os mesmos trajectos pelas instituições que servem este tipo de Caridade, põe um avental e ele próprio serve a Sopa dos Pobres tal como antes de si o faziam os contemporâneos do seu pai.
Estamos a retornar acelaradamente aos tempos da caridadezinha hipócrita da consciência tranquila, que quem viveu antes do 25 de Abril de 1974 em terras onde a miséria campeava, bem se recorda.
Enquanto país, somos o que somos, desde 1143. Os governantes, que continuam a conseguir manter os governados em rédea curta, asseguram a estabilidade do sistema.
Por sua vez, os politicos sempre tiveram como meta preservar esta situação: a sociedade de governantes e de governados, mantendo estes com rédea curta por via de favores e esmolas.
Construiu-se - e mantém-se, assim, uma sociedade favorecida, dentro de uma outra, de desfavorecidos. A dos empregos pelo partido e não pela competência, dos negócios pelos interesses e não pela qualidade orçamental, da governação pelos favores e não pela liberdade do voto em consciência.
É assim que se perpetua a pobreza, a caridadezinha e a humilhação de não podermos ser cidadãos de corpo inteiro. Acabei de ler um texto de Filipe Tourais sobre o assunto, que não resisto a transcrever:


"Causa-me sempre asco ver governantes ou candidatos a governantes a acotovelarem-se nas distribuições de massa e arroz dos bancos alimentares. Eles acotovelam-se porque sabem que a sua popularidade aumenta sempre que conseguem aparecer nos directos das televisões ou nas fotografias dos jornais. A esmagadora maioria não é capaz de compreender que se os bancos alimentares existem tal não significa outra coisa senão que o Estado que aqueles seres que se acotovelam para angariar popularidade objectivamente falhou com a multidão à qual não deixou outra alternativa que não a da caridade. Falham na administração da coisa pública para a seguir ganharem popularidade montados no seu próprio falhanço porque a maioria prefere aplaudir a caridade e os falhados que a tornaram necessária a exigir um Estado que não condene ninguém à privação e à humilhação de ter que pedir esmola.Ontem calhou ouvir a Isabel Jonet a arrancar aplausos a esta maioria que gosta de políticos e de governantes falhados. Perguntaram-lhe como reage à crítica que lhe aponta que pessoas como ela necessitam que existam pobres e muita pobreza para viverem e se notabilizarem. Trazia a resposta mais do agrado da maioria que aplaude o Estado falhado que a sua caridade evidencia na ponta da língua.
Começou por dizer que não liga a críticas de natureza político-ideológica. No imaginário Jonet, a política e a pobreza serão coisas sem relação alguma uma com a outra e, segundo a própria, a ideologia é luxo próprio de pessoas com vidinhas – disse vidinhas – que nunca fizeram nada pelos outros. Exigir políticas conducentes a um Estado eficiente que não deixe ninguém para trás está fora deste imaginário, pelo menos na qualidade de fazer pelos outros.
Terminou a tirada rematando com a autoridade alegadamente conferida pela sua qualidade de voluntária. Ela sabe como a maioria valoriza o voluntariado. Todos devíamos seguir o seu exemplo e transformar-nos em voluntários como ela, que certamente vive de ar e vento e não precisa de um salário ou de uma fortuna que lhe pague as contas, apenas de donativos que não existiriam se todos fossemos voluntários. Em bom rigor, se todos vivêssemos de ar e vento como a senhora, não haveria gente interesseira que trabalha por dinheiro, logo, para além de não haver donativos também não haveria impostos, logo, também não haveria Estado, logo, estaríamos todos na fila para o banco alimentar. Nada de grave. Afinal, aquilo não seria nenhum banco alimentar, seria um banco de ar e vento, e seríamos todos livres e felizes como uma Jonet, embora uma Jonet diferente da que ela é, menos massas e arrozes e mais oxigénio e outros gases, dos raros e dos outros. Mas caridosos e abnegados como ela, que não precisa que haja pobres e que o Estado falhe para ser tão boazinha como é.
É não ligar ao o que dizem os invejosos egoístas com vidinhas que nunca fizeram nada pelos outros, inexplicavelmente mais preocupados com a miséria generalizada que se instalará caso a Europa que nos empobreceu nos últimos vinte anos não responda como se prepara para não responder à crise que se vai abatendo com raiva sobre todos do que empenhados em contribuir com umas latas de atum para a perpetuação da pobreza de que é feita a vaidade de mais uma baronesa da caridade. Venham de lá dessa Europa amiga de todos, em especial dos pobrezinhos, mais vinte anos de óptimas notícias para ela. A política e as políticas nunca terão relevância social comparável ao de uma lata de atum."

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