O dia em que o cantor Francisco José desafiou a RTP em directo
«Parecia uma noite como qualquer outra na Rádio Televisão Portuguesa.
A emissão abrira às 19h30, patrioticamente, com o hino nacional. O “Telejornal” transmitira depois as notícias filtradas por um sistema quase infalível de controlo da informação. Seguiram-se as rubricas próprias de terça-feira — o “Programa Feminino” e a “Crónica do Progresso”.
Às 20h45, a única estação televisiva portuguesa dedicara uma hora à tourada, com a voz ensonada e os textos gongóricos de Leopoldo Nunes. Repetiu-se o “Telejornal”, o “Boletim Meteorológico” e um enlatado ficcional comprado nos Estados Unidos.
Por fim, às 23h15, a estação abriu espaço para a música ligeira. O programa “TV Clube” convidara o cantor Francisco José, recém-regressado do Brasil, para uma atuação em direto, acompanhado pela orquestra do maestro Alves Coelho.
Francisco José, cantor de sucesso nos derradeiros quatro anos no Brasil, voltava a casa. Cantou algumas das suas obras mais conhecidas e terminou com ‘Chão Estrelado’, dedicando o tema aos pais. Depois, de microfone na mão, concluiu a prestação de forma inesquecível. Durante pouco mais de três minutos, disse ao público português que a RTP discriminava os artistas portugueses face aos congéneres estrangeiros. Em frente das câmaras, sem se deter, lembrou que alguns cantores estrangeiros recebiam 50 ou 100 contos por uma prestação na televisão, mas os artistas portugueses recebiam dois mil escudos na melhor das hipóteses. “O público não compreende uma palavra do que esses artistas cantam. Não importa. Pagam-lhes bem.”»
Gigliola veio a Portugal, tempo depois, convidada pela RTP. Não há notícia de quanto cobrou pela actuação, mas a verdade é que o tema cachês estava, na altura, ainda bem quente, porquanto Francisco José – cançonetista com mais carreira no Brasil do que aqui na sua terra, mas, ainda assim, extremamente popular – resolvera aproveitar-se da presença frente às câmaras para protagonizar (é o termo) um inédito “tempo de antena”.
Foi uma bomba na pacatez do burgo! Mas contemos como foi. Estava-se a 21 de Julho de 1964 e o programa era um “TV Clube”. Francisco José cantou 3 ou 4 cantigas (os inevitáveis “Olhos Castanhos”, entre elas) e resolveu fazer uma pausa para conversar com o espectador. Começou por referir que os artistas portugueses lutavam tenazmente no Brasil para imporem as músicas do seu País. Até aqui, tudo bem. O pior veio a seguir, quando lamentou que esses mesmos artistas, cujo esforço em prol do País não era reconhecido, fossem discriminados também pela RTP, que não lhes oferecia retribuição digna, quando eles voltavam. Em contrapartida – foi dizendo – a RTP não se eximia a pagar altos cachês a artistas estrangeiros o que, no entender dele, Francisco José, representava uma grande injustiça. E citou dois exemplos: Charles Trenet, que recebera 60 contos por uma actuação; e Carmen Sevilha, que ainda recebera mais 40. A conversa (que foi mais ou menos como reproduzimos ) ocupava já razoável tempo de emissão e da régie não vinham decisões. Dir-se-ia que o inesperado da situação gerara uma espécie de atonia. E foi preciso que Francisco José avançasse para a câmara mais próxima e perguntasse, frontalmente, se podia continuar o programa. É que já não tinha mais para dizer mas ainda lhe faltavam duas canções. O corte de emissão, que se seguiu, correspondeu à resposta.
Terminada a emissão foi detido e interrogado. Escusado será dizer que a Imprensa e a Rádio deram o maior destaque ao inusitado acontecimento, puxando ao sensacionalismo. Durante dias não se falou doutra coisa. Os responsáveis da RTP, esses dedicaram ao assunto várias reuniões que sempre concluíam com a mesma verdade: casos idênticos só poderiam ser evitados com a gravação prévia dos programas. A exclusão total dos directos estava, porém, longe de ser possível, dada a escassez dos equipamentos e dos suportes vídeo, por razões de custos, prioridades, etc. Entretanto, o SNI - Secretariado Nacional da Informação, foi lesto em divulgar um comunicado. Tinha o seguinte teor: “Foi superiormente determinado que se proceda a rigoroso inquérito sobre as circunstâncias em que ocorreu o condenável incidente verificado na emissão da Televisão do passado dia 21 e mandado apresentar, com urgência, relatório circunstanciado acerca das condições de remuneração dos artistas portugueses e estrangeiros, desde o início do funcionamento da Radiotelevisão. O delegado do Governo e os administradores da RTP por parte do Estado iniciaram já aqueles trabalhos.” Com efeito a acta da reunião do Conselho de Administração referente a 29 de Julho, expressa: “O sr. Presidente informou o Conselho de que tem estado a tratar com o sr. administrador Freitas da Costa e com o sr. delegado do Governo o caso do incidente provocado pelo cançonetista Francisco José no programa ‘TV Clube’ de 21.7.1964. Os dois administradores por parte do Estado vão elaborar um relatório sobre a política de ‘cachets’ praticada pela RTP e o sr. delegado do Governo vai conduzir um inquérito para determinação das razões que tornaram possível o incidente.”
A RTP entregou o assunto ao advogado dr. Alfredo Manuel Pimenta, após ter tomado a decisão de mover um processo-crime ao cançonetista. Na segunda audiência do julgamento, realizada em Janeiro de 1966 (!) “Francisco José apresentou um conjunto de explicações que a RTP, pelo seu advogado, considerou satisfatórias em face do que o meritíssimo Juiz declarou o réu isento de culpa e responsável pelo pagamento do imposto de Justiça.” (acta do Conselho de Administração da RTP, 26.1.1966). Sabe-se que, na ocasião, o cançonetista “lamentou o clima emocional criado á volta da sua actuação, que jamais esteve nos seus propósitos, assim como nunca teve o intuito de afectar por qualquer modo o bom nome, a honra e o prestígio da RTP.” E assim se encerrou um caso polémico.
Anos depois, já em democracia, Francisco José regressou aos ecrãs da RTP para cantar as suas melhores canções – entre elas, os inevitáveis “Olhos Castanhos”. Não fosse o diabo tecê-las... o programa foi previamente gravado.
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