terça-feira, 8 de setembro de 2020

O que esperar dos "Odoricos" do século 20?

Depois de 46 anos de democracia, esperava que o poder local fosse uma escola de democracia e um viveiro de políticos honestos, competentes e empenhados com o bem comum. A proximidade em relação aos cidadãos, o fato de estar em causa a resolução de problemas das localidades, a proximidade entre eleitos e eleitores, são factores que me levaram a pensar que isso seria possível.

Como escrevi em 15 de Setembro de 2006 (já lá vão quase 14 anos), «com a “Revolução dos Cravos”, o poder local passou a ser encarado de outra maneira. As populações desejaram que, nas autarquias, o poder político se aproximasse dos cidadãos.

Muitos de nós, nos primeiros anos após o 25 de Abril de 1974, chegámos a acreditar que passaria por aí o incremento de uma cultura política de cidadania activa, capaz de neutralizar a cultura de submissão e de autoritarismo.

Para se ter transformado este desejo em realidade, teria sido condição inadiável, que o novo país democrático tivesse descentralizado e regionalizado o poder político e administrativo. O que não aconteceu.»


Como sabemos, até na Aldeia, as regras do jogo foram pervertidas. Em vez de escolas de democracia e de boas  políticas, postas em prática por políticos preocupados com a sua Terra e o seu povo, as autarquias  transformaram-se em pequenas ditaduras e em escolas de velhacaria. Onde deveria haver transparência, temos opacidade; onde deveria haver apelo à participação do povo,  passou a existir pressão para que as pessoas não coloquem questões ou exerçam o seu dever de cidadania; onde deveria haver espaço para o debate passou a imperar o despotismo e a vontade imperiosa do mando absoluto e arbitrário.


É mais fácil perverter a democracia numa pequena autarquia do que numa autarquia de uma capital ou no governo de um país. Numa pequena autarquia, todos os cidadãos estão ao alcance do poder. Exigia-se, por isso que os autarcas tivessem sido criados numa boa escola democrática e, assim, resistirem à tentação de não condicionar a liberdade de cada cidadão. 

Um autarca de um pequeno concelho e ou de uma Aldeia tem muito poder: pode mandar multar, complicar uma licença, retirar um subsídio, cortar nas ajudas de custo de um funcionário, facilitar um transporte para uma ida ao "Preço Certo".

É fácil instalar a cultura do medo. A auto censura faz o resto: leva muitos, incluindo a oposição, a remeter-se a uma postura de silêncio. 

A um autarca sem valores e escrúpulos,  é relativamente fácil transformar os funcionários de uma câmara na sua tropa de choque. Aos que não são do seu partido, cria mecanismos para que se abstenham de opinar  e de participar em actividades políticas.


As fragilidades da comunicação social, podem ser aproveitadas para transformar esses órgãos  de comunicação social em veículos informativos oficiosos.

Se os donos da comunicação social, tiverem empresas que podem lucrar com encomendas feitas pelas autarquias é ainda mais fácil tê-los do lado do poder. 

Um pequeno concelho em Portugal, no século 20, em vez de ser uma escola para o exercício da cidadania democrática,  pode fazer lembrar Sucupira e a telenovela brasileira «O Bem-Amado»,  escrita por Dias Gomes.

Perdida a articulação da democracia participativa com a democracia representativa, o poder local afastou-se dos cidadãos.

O poder local, em vez de neutralizar a distância dos cidadãos em relação ao poder central, acabou por reproduzi-la. Agora, é o que sabemos. Oportunistas de todos os matizes proliferam em muitas autarquias.

O que esperar então do poder local?

À luz deste diagnóstico, continuo a acreditar que o futuro do poder local continua a passar pela democracia participativa. A força e a legitimidade que ela conferiria ao poder local, seriam as armas mais eficazes para mobilizar a seu favor o poder central. Mas, será que isso, no país real que temos, irá alguma vez acontecer?

Por diversos factores, a maioria dos cidadãos, sejam de esquerda ou de direita, têm a liberdade de opinião, de pensamento e de acção, condicionada.

Que o mesmo é dizer: a democracia e o exercício da cidadania também estão condicionadas.

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