"1.
Conceição Matos aceitou estar comigo amanhã num monólogo que levarei em 2023 a vários teatros do país.
Aceitou estar comigo no Barreiro, lugar para onde foi viver com os pais e irmãos. Uma família de operários que chegou a uma terra de operários no final da década de 1930.
A Conceição tinha três anos quando a segunda guerra mundial começou. Tinha três anos quando chegou ao Bairro das Palmeiras onde fez vida e construiu o sonho de um dia Portugal deixar de ser uma ditadura da mesma família dos fascismos de Franco, Mussolini ou Hitler.
2.
Amanhã no Barreiro, nos meus “Ficheiros Secretos”, estará na primeira fila a mulher que foi mais torturada na história do Estado Novo.
A doce Conceição Matos, mulher de Domingos Abrantes, que mantém os seus olhos sem ponta de ressentimento depois de tanto sofrer, depois do tanto que lhe fizeram.
A Conceição que depois da quarta classe feita começou a trabalhar numa máquina de costurar e depois numa fábrica de pirolitos onde lavava as garrafas.
Terra dura, terra de exploradores e explorados, de conflito de classes.
O Partido Comunista tornou-se parte da sua vida.
Da sua e dos irmãos – o Alfredo, o mais velho, foi levado para o Aljube aos 18 anos.
E ela tornou-se comunista.
Esteve na clandestinidade muitos anos.
Foi várias numa só.
Maria Helena, Marília, Benvinda.
Mas só teve uma única cara e um único nome na prisão.
3.
Conceição Matos resistiu a tudo.
Às tantas tornou-se um troféu de caça para os inspetores Tinoco e Madalena, dois monstros que faziam apostas para lhe arrancar uma palavra que fosse.
E irritavam-se porque da boca de Conceição não saia rigorosamente palavra nenhuma que lhes servisse.
Torturaram-na barbaramente.
Espancaram-na.
Arrancaram-lhe as unhas a sangue frio.
Obrigaram-na a estar imóvel durante horas e horas e horas.
Obrigaram-na à tortura do sono, dias e dias e dias.
Choques elétricos, humilhações atrás de humilhações, uma perversidade levada a uma categoria demencial.
Arrancavam-lhe a roupa até ficar nua. Tiraram-lhe fotografias que distribuíam aos agentes da PIDE na António Maria Cardoso. Homens que riam fazendo gestos de natureza sexual enquanto olhavam para o seu corpo e para a fotografia que guardavam nas suas mãos como violadores à espera da presa.
Deixaram-na vários dias sem poder ir à casa de banho. O seu corpo com urina, com fezes, com o sangue da menstruação.
E ela com a roupa que trazia, a ter de limpar a cela imunda com o que tinha, com a roupa que tinha.
E depois a raiva dos pides por ela não falar, os agentes a entrarem e a espancá-la uma vez mais e uma vez mais e uma vez mais.
A gritarem os nomes que imaginas.
Tudo o que imaginas.
4.
Amanhã, no seu Barreiro, dar-lhe-ei um abraço forte.
E perguntar-lhe-ei a razão para ser assim.
Para continuar assim, com aqueles olhos curiosos de vida, sem ponta de ressentimento.
Conceição Matos, 86 anos, casada com o histórico Domingos Abrantes, dirigente marcante do PCP.
Uma das últimas provas vivas do combate e do sacrifício de tantos e tantas por uma ideia de liberdade. Ela e o marido, casados em 1969, em Peniche.
Conceição que é a prova de um combate corajoso por uma ideia de um mundo mais justo para quem nascia marcado com o ferro da desigualdade. Para gente como ela que nascia condenada a passar pela vida com um único objetivo: sobreviver.
Eu, filho de um comunista, mas crítico algumas vezes do PCP, não o esqueço.
E não o relativizo."
domingo, 8 de janeiro de 2023
A história de Conceição Matos, a mulher mais torturada pela PIDE
Via sacado daqui
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