Gosto de pensar que o teu corpo nasce nas minhas mãos, tão rapidamente como uma frase que escrevo.
O teu corpo e as palavras fazem-me sair de casa, perder-me em sentidos, até que a angústia é tanta que só posso querer encontrar o caminho de regresso. Se te agarro com força, é por sentir medo.
Há sempre um momento, mesmo antes do sobressalto, em que a tua boca incha e eu rebento, em que as tuas mãos se abrem, os dedos despontam, e eu quase morro. Voltar a casa, amor, voltar a mim, à sala de todos os partos, é querer que cresças mais.
Um dia, há muitos anos, encontramo-nos, lembras-te?
Atravessávamos meridianos sempre que nos embriagávamos, mas, nesse dia, aproximaste-te de mim como se tivesses um radar e pudesses saber que eu existia.
E, depois...
Olha, é possível que qualquer um de nós, já só esteja meio vivo, seja apenas meio humano...
Contudo, agora que a água e o ar que respiramos nos transmite vida, quero que sejas tudo a inventar.
Deixa-me acender-te.
Agora, que sob a acção da luz da noite mudo de cor, deixa-me transformar-me...
António Agostinho, o autor deste blogue, em Abril de 1974 tinha 20 anos. Em Portugal havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, nos livros, no teatro, no cinema, na música, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado. Havia medo. O ambiente na Cova e a Gala era bisonho, cinzento, deprimido e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto. O preto era a cor das suas vidas. Ilustração: Pedro Cruz
1 comentário:
Sublime.
Continua e não terás descanso.
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