A vida ensinou-me, mesmo antes de ir para a escola primária, que eu era da Cova e Gala - pelo menos em sentido geográfico.
A Figueira, ficava do outro lado: aqui era a outra margem.
Durante muitos anos, não me senti figueirense por aí além.
Ir à cidade não era era fácil. A família não tinha transporte próprio e o dinheiro para pagar o bilhete do autocarro, ou do barco - os saudosos Luis Elvira e Gala - não abundava.
Até acabar a Primária, as deslocações à cidade foram escassas e espaçadas, quase sempre a pé, pela velha ponte dos arcos, atravessando a Morraceira (uma ilha que tanta polémica tem dado ultimamente na política local, com uma área de cerca de 635 hectares, entre o braço sul e norte do Mondego...), seguindo depois pela velha ponte da Figueira (a velha ponte de ferro, que apenas permitia o trânsito num sentido de cada vez).
Quando chegávamos ao lado norte, encontrávamos empoleirado numa casota, alguns metros acima do solo, o homem que controlava o trânsito na velha ponte, com o recurso a sinais, e o posto em forma de quiosque da Polícia de Viação e Trânsito (a Polícia de Viação e Trânsito foi extinta pelo governo de Marcelo Caetano, sendo as suas funções atribuídas à Guarda Nacional Republicana...).
Estávamos na Figueira.
A seguir à primária, fui continuar os estudos para a Bernardino Machado e a Figueira ficou muito mais perto: fiquei a perceber que a Cova e Gala, não era só a Cova e Gala, mas também uma parte da Figueira - uma parte esquecida e desprezada pelo poder político, mas uma parte essencial dela.
Hoje, tudo mudou: é muito raro o dia em que não me desloco à cidade.
Hoje, sou um figueirense convicto. E, é por isso, que continuo perplexo com o abandono a que, por exemplo, continua votado um diamante turístico como o Cabedelo.
No Cabedelo já se realizaram provas do campeonato do mundo de surf e várias etapas do circuito nacional. O Cabedelo é uma opção de excelência, há muito referenciada como sendo das melhores ondas do mundo para a prática de surf.
Assim sendo, pergunto-me porque é que ainda não existem infra-estruturas que confiram qualidade aos praticantes de surf e a quem visita um local que é, talvez, a melhor varanda turística debruçada sobre o mar no nosso concelho?
Quando me lembro de anteriores campanhas eleitorais, recordo promessas que continuam por cumprir em relação a este local, nesta outra margem.
Não é que as promessas e os slogans mentirosos, em campanhas eleitorais, me perturbem grandemente, pois, presumo, que todos estamos habituados e já não esperamos grande coisa...
Isto, porém, é mais que uma mentira. Para um covagalense, que se queira sentir também figueirense, é uma mentira despudorada. A Figueira, em que os políticos me incluem no decorrer das campanhas eleitorais, não é a realidade em que gostava de estar incluído.
Não somos cidadãos figueirenses de corpo inteiro, enquanto os políticos continuarem a negar aos habitantes da Cova e Gala o direito à cidadania.
Neste momento, como já aconteceu em anteriores executivos, sinto que a Figueira de Ataíde e da sua maioria absoluta, não é a minha Figueira.
O executivo figueirense não me representa, porque não olha para a minha Aldeia como olha para a cidade.
Fica um exemplo concreto: as condições em que na Cova e Gala se pratica desporto. E não estou a referir-me, apenas, ao sintético...
No concelho, o que interessa é a cidade dos negócios. É a Figueira dos interesses.
A Figueira não é um concelho: é uma empresa. Consequentemente não tem cidadãos: tem números.
Mas, isto já vem de longe. “Entre o progresso e a decapitação da beleza natural”, decidiu-se pelo progresso.
O porto fluvial foi a aposta. Com a “construção dos molhes de protecção da barra”, veio a “melhoria da segurança no acesso às zonas portuárias" e o “aumento, embora gradual, na movimentação de mercadorias”.
Mas, em “contrapartida, a outrora praia viu-se transformada, ao longo dos anos Setenta, num depósito gigante de areia.”
Surgiu o dilema: “Turismo ou desenvolvimento comercial”. E o vencedor foi “o elo mais forte”.
Morreu “o que havia feito sobreviver a cidade após o declínio comercial de finais do século XIX. De Rainha das praias transformaram-na em Praia da Claridade. De Praia da Claridade, num amontoado inestético de areia." Na Praia da Calamidade.
Contudo, isto não ficou assim: o molhe norte do porto comercial da Figueira da Foz cresceu mais 400 metros e tornou-se numa "ratoeira" para os pescadores.
Mas, isso que interessa? O importante são os records do porto comercial, os números, sempre os números...
A ganância ainda vai acabar por dar cabo disto tudo.
Entretanto, a esmagadora maioria dos figueirenses continua com o futuro adiado na Figueira.
A Figueira, ainda não é «Nós». A Figueira, continua a ser «Eles».
António Agostinho, o autor deste blogue, em Abril de 1974 tinha 20 anos. Em Portugal havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, nos livros, no teatro, no cinema, na música, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado. Havia medo. O ambiente na Cova e a Gala era bisonho, cinzento, deprimido e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto. O preto era a cor das suas vidas. Ilustração: Pedro Cruz
3 comentários:
Excelente texto.
Passado, presente e um futuro em falha...
Caro Agostinho, Venho por este meio solicitar que me faculte o seu Email a-fim-de o contactar com elementos e fotos que, estou certo vai apreciar. Sou um antigo veraneante dessa Querida Figueira onde toda a m/ infância e juventude fez dela a minha 2ª Cidade da m/ vida. Ainda lá está o chalé verde na rua da Liberdade nº3 - Desde já mtº grato, p. s. Atenção Eugénio
agostinh5@gmail.com
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