sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Cegueira partidária, faquistas de esquina e ignorantes da gaia ciência [1]

Carlos Matos Gomes, in Medium

A atual discussão sobre migrações é tão velha como o mundo e diz respeito à questão da formação da identidade dos povos. A afirmação de há dias de Pedro Nuno Santos, secretário geral do Partido Socialista, de que os imigrantes têm de “perceber que há uma partilha de um modo de vida, uma cultura que deve ser respeitada”, a propósito da discussão sobre a regulação da imigração, levantou uma nuvem de comentários políticos que revela um de três atributos, ou os três em conjunto ou conjugados: falta de escrúpulos (os fins justificam os meios), ignorância e inconsciência.

O que Pedro Nuno Santos disse faz parte, ou devia fazer, do conhecimento elementar cujos aspetos fundamentais Anthony D. Smith, um sociólogo britânico, resumiu no livro A Identidade Nacional (1997): um território histórico como terra de origem, mitos e memórias históricas comuns, que promovem um sentimento de pertença a uma comunidade de semelhantes.

O que a frase de Pedro Nuno Santos quer dizer em primeiro lugar é que existem diferenças culturais que se traduzem em modos distintos de entender o mundo — o que originou diferentes religiões, diferentes interpretações do universo, diferentes línguas, diferentes interditos entre tantos fatores. A consciência de que existe essa diferença originou a velha frase: em Roma sê romano — que parece ser do desconhecimento dos críticos de Nuno Santos, assim como a locução latina cujus regio, ejus religio (De quem é a região, dele se siga a religião), frases que mais não traduzem que a noção de estrangeiro comum a todas as civilizações e que entre os povos do Leste de Angola e da Zâmbia está expressa no ditado “o visitante não escolhe a melhor beringela, aceita a que lhe for distribuída”.

A cegueira partidária transformou a questão de identidade que está na base de conceitos de povo, de cultura, de nação, e até de Estado-Nação, uma questão presente em todos os conflitos da História, num caso de guerra por votos, de um lado os que afirmam que os migrantes têm é que cumprir a lei: como se a lei não fosse fruto do uso e costume, e do outro os que defendem que os migrantes são uma ameaça à ordem e à identidade nacional, como se antes desta atual fase de migração a sociedade portuguesa (e todas as outras) fosse uma sociedade de ordem e paz, o que revela ignorância histórica ou má-fé ao esquecer as guerras civis que originaram a fundação da nacionalidade, a crise de 1385, a guerra civil do Prior do Crato, as desordens do Alentejo ditas do Manuelinho, ou altercações de Évora, as lutas liberais, as revoltas e lutas populares da República… e revela ainda as dificuldades históricas da sociedade portuguesa em integrar os escravos quando estes foram libertados, e também a de integrar as comunidades de judeus que permaneceram em Portugal com a falsa conversão e de que Belmonte, Castelo de Vide são exemplos.

A atual questão da migração foi e é excitada por fins políticos pelas classes dominantes dos Estados Unidos e da Europa para manterem o seu domínio numa situação em que estes dois espaços que foram hegemónicos estão a sofrer a concorrência da Ásia, em que o poder está a passar do Atlântico para o Pacífico.

A questão da migração é um velho argumento — um truque de algibeira — ressuscitado pelas classes dominantes segundo as suas conveniências. Estamos, os povos e as gentes comuns, a correr como galgos atrás de uma negaça. Em Portugal, atualmente, a negaça chama-se Ventura.

Na contemporaneidade a questão da integração de comunidades “estrangeiras” teve o seu primeiro grande momento após a abolição da escravatura nos Estados Unidos e nas Américas a sul. Os grupos dominantes, europeus, confrontaram-se com esse problema. A igualdade racial apenas foi reconhecida oficialmente nos EUA nos anos sessenta e com as resistências que persistem. A América Latina continua a viver um conflito entre três comunidades, as indígenas, as oriundas da escravatura e as comunidades europeias, portuguesas e espanhola.

Na Europa a migração começou a ser um problema sério após o final da Segunda Guerra, que originou duas correntes migratórias, uma originária dos países periféricos para os centrais, destinada aos trabalhos pesados da reconstrução, dos portugueses, espanhóis, turcos, romenos, gregos e também italianos em direção a França e à Alemanha, principalmente e, simultaneamente à imigração de longa distância resultante do movimento descolonizador, migrantes resultantes da independência da Índia, de que resultaram a União Indiana, o Paquistão e o Bangladesh, com guerras civis e que se dirigiram para a Grã Bretanha, e dos migrantes da Indochina, que se dirigiram para França, das colónias africanas inglesas e francesas, neste caso com particular relevo para a Argélia.

A Grã Bretanha e a França responderam inicialmente de forma distinta a estas vagas de migrantes, a primeira entendendo que a melhor solução era o multiculturalismo que sempre tinha cultivado na sua administração colonial, deixando os indígenas, agora imigrantes, manter as suas práticas culturais e identitárias, o que deu origem aos atuais guetos à volta das grandes cidades e mesmo no seu interior. E a França optou por integrar os migrantes na sua cultura, fabricando franceses de além-mar. As duas opções fracassaram, quer o multiculturalismo quer o integracionismo.

A formação de uma identidade é um processo muito longo. Portugal, tal como outros estados europeus, formou a sua identidade nacional a partir de identidades regionais. No caso português basta ler Oliveira Martins, que inspirou Eduardo Lourenço e, mais perto, José Mattoso, Jorge Dias, Orlando Ribeiro, que referem a diferente identidade do transmontano, do beirão, do alentejano, dos povos do norte e do sul, do interior e do litoral e ainda integrando identidades externas, nomeadamente de migrantes europeus, ingleses, franceses, dos países baixos e de africanos vindos como escravos e posteriormente libertos.

A sociedade portuguesa, tal como a europeia, os seus políticos e os intelectuais conhecem, ou deviam conhecer bem o fenómeno da migração na vertente de imigração e de emigração. O alarido esbracejante a propósito do tema é revelador de má fé, de faquismo político, porque sendo o fenómeno conhecido há tanto tempo, o mínimo que seria exigível a um político que merecesse ser levado a sério seria que ele apresentasse soluções em vez de gritar pela polícia, que é o que estão a fazer os dirigentes europeus. Enviar navios patrulha para o Canal da Mancha ou para o Mediterrâneo é como estancar um rio com uma rede. Puro espetáculo.

Há soluções para a questão migratória na Europa? Não. O que existe são caminhos para reduzir os fluxos migratórios e o primeiro deles é não provocar conflitos que os geram, exatamente o contrário do que a Europa tem feito ao alinhar com a política de desestabilização dos Estados Unidos no Médio Oriente, em África e na Ásia. O segundo é fomentar uma política de desenvolvimento sustentado na Europa, o que exige a energia da Rússia e as matérias primas de África e da América Latina: e claro, boas relações da Europa com o mundo.

O que não é solução é encostar migrantes à parede, ou encerrá-los em campos de concentração, ou despejá-los como lixo tóxico a troco de pagamento a políticos corruptos de determinados estados (a Albânia ou o Ruanda, por exemplo). Nem servir de peão às ordens dos Estados Unidos. Comprar armas também não resolve o problema da segurança, antes pelo contrário, aumenta os riscos. Todos os grandes conflitos foram antecedidos por uma fase armamentista.

A política europeia tem de ser virada do avesso.

[1] Gaia: termo grego associado à origem primordial.

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