sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Como não divulgo apenas a malta do PSD, cá vai a prosa de Luis Castro publicada esta semana no jornal "A Voz da Figueira"

AQUI? DORMIMOS I
Ao longo da Praça Nova passeavam com um andar compassado, n’uma demorada regulada, grupos de empregados; logistas; negociantes de vinhos e proprietários paravam ouvindo, com attenção de sensatez e assentimento insuspeito, algum que fallava e mostrava  gestos commedidos, pautados, de quem expõe uma ideia ou quer convencer. Um outro banco era occupado por famílias do povo, operários, velhos comerciantes aposentados, na passividade; pelas raparigas de trabalho com os seus trajes aceiados, do domingo, de cores vistosas, e creadas de gente rica guardando as creanças que brincavam, saltavam na calçada e nos bancos. A maior parte dos estabelecimentos em torno estavam fechados. Os caixeiros das duas lojas de moda, à esquina da rua das Flores, à porta, em pé, aborreciam-se, tinham bocados de conversas, dirigiam chalaças a alguma rapariga transeunte, ou a qualquer moça de cosinha, que voltava da fonte, ajoujada, vermelha pelo pezo do caneco cheio. No Café Central entravam e sahiam de quando em quando artistas, caixeiros, negociantes novos, no gasto domingueiro da chávena de café e da genebra, ou extravagancia das partidas de bilhar. Uns poucos barqueiros, catraeiros e algarvios dos cahiques de pescaria, vinham caminhando devagar, em direcção à taberna da esquina da rua Nova, falando soturnamente com o cachimbo ao canto dos beiços e as mãos atraz das costas. Da Ladeira do Monte desciam dois marinheiros inglezes bêbedos aos zigs-zags estonteados, cantando com uma voz berrada, mostrando os punhos fechados em attitudes de dar murros, seguidos e cercados pela garotada, que às vezes dava fugidas curtas, inesperadas, e gritava em apupos de boccas escancaradas.
Em baixo, no novo caes, quasi em frente da Praça parava o carro americano, despejando a gente que vinha de Buarcos, da praia e do Bairro Novo. Na esplanada ao pé da rampa, alguns serranos das barcas da Foz do Dão estavam encostados a umas pipas vasias. Um zelador municipal, o Caras Altas, policiava passeiando vagarosamente no lagedo da casa do Tribunal, olhando para uma parte e outra com uma posição lorpa de cabeça. Algumas famílias que habitavam as casas da Praça, enfastiavam-se à janella, com os braços pousados no parapeito, ou com a cabeça pezando sobre uma das mãos. (…)
Para baixo via-se uma pequena porção do paredão novo, as partes altas do theatro Príncipe D. Carlos, o guindaste das Obras Públicas pintado de encarnado, a doka onde oscillavam diminutamente amarados os hiates do costeiro, as rascas de Peniche, os cahiques do Algarve, os bateis dos carregamentos do porto e os barcos de transporte do Mondego. Depois, mais além, alastrava-se a largura esverdeada do rio, às vezes cortada pelos botes; avistavam-se os navios de maior lote, ancorados na estacada, com a bandeira da respectiva nacionalidade içada no topo do mastro da popa; mais adiante as marinhas do sal, d’um tom negro, onde se distinguiam parte dos depósitos rectangulares da água do mar; as casas caiadas, espalhadas irregularmente, das povoações de Lavos, Carvalhaes e Regalheiras, rodeadas de pinhaes e de uma vegetação escura; as habitações acanhadas e os moinhos da Galla; alguns denegridos casebres de madeira da Cova e uma grande porção do areal do Cabedello. A uma grande distância avultavam as estaturas enormes, d’uma cor pesada e triste, dos montes que se alongavam para as bandas de Leiria, apresentando uma perspectiva esfumada, um pouco nevoenta, que se ia azulando n’uma graduação insensível para o alto, e na direcção da Vieira branquejava uma larga e comprida tira da costa do sul.

Gaspar de Lemos, do romance inédito “A Filha do Senhor Silva”, transcrito do Almanach da Praia da Figueira para 1878-1879, 1º ano, p.168-170, rep. em "Ruas e Praças da Nossa Terra II", de Isabel Simões, in Revista Litorais, nº 4, Maio 2006.


AQUI? DORMIMOS II
Não há tempo para textos estruturados.
Desse mesmo tempo que perdemos no corredor (dos) congelados!
Quando demos, quando damos conta desse enregelamento que se instalou na cidade?
Dessa estrada da cidade que a circunda e afasta?
Quando percebemos que volteamos a cidade vezes sem conta?
Quando acaba esse poço da morte que diverte a cidade em vez de gente na feira?
Quando percebemos que, nisso e na internet, quase não nos encontramos, e que nas poucas vezes, quase já não nos conhecemos, nem temos vontade de conhecer.
Quando percebemos que não temos espaço nosso?
Que as praças e o centro escureceram abandonados, num piscar de olho de coruja.
Que a Rua da República se foi de uma ponta à outra e ninguém quer falar sobre isso em público.
Quando percebemos que aqui estimamos alguns e odiamos alguns, alternadamente, mas cada vez mais ninguém se tolera?
 Que rimos uns do outro sem pensar, essa dificuldade, e depois desaparecemos todos!
Que existem coisas entre o céu e a terra que jamais se alcançarão.
Vejamos: a situação financeira do nosso Município desagravou-se, parte substancial de dívida foi reduzida.
Grandemente por isto, e é importante, assistiu-se a uma dignificação da actuação e da posição da Câmara Municipal. Facto acentuado pelos tempos, marcados por uma conjuntura nacional de grave crise económica. 
Menos visíveis, muitos esforços e tempo foram gastos, ocorrendo tentativas, fracassos e sucessos na resolução do sem fim dos muitos “dossiers” pedregosos herdados de anteriores executivos.
Posto isto, esse anterior estado das finanças municipais e o resultado das eleições autárquicas, quase se afirma existir uma comunhão silenciosa entre eleitos e muitos eleitores, a quem, num eventual respeito mútuo emergido por uma tempestade, menos importasse o lustro do convés, e até o próprio rumo do navio, mas mais o naufrágio que se tomou por evitado. Como poderia ser de outra forma e o que acresce?
Acresceria dizer que é o mar morto, do nosso sal, do sal do Estado, do sal da União Europeia. Sal por ora.
Acresceria, não fossem as intrigas partidárias, mesmo muito discordando, ressalvar que governar cidades não há-de ser fácil. Que existem muitas promessas incumpridas, erros, inércia, medo de arriscar e, acima de tudo, desconhecimento, falta de visão e engenho. Que falta um mandato. Um rei que só enverga coroa vai nu?
Acresceria, não fossem as intrigas partidárias, mesmo muito discordando, ressalvar que opor-se a quem governa cidades não há-de ser fácil. Mas, como meros exemplos, o desígnio e a identidade da cidade é ser a praia que foi e tende a debater-se, nem a muito errada e dispendiosa obra da praia, que só nos afasta da solução ideal, mas… os parafusos. A Figueira Parques, única empresa municipal rentável à venda (o que nada deve fazer supor, mas antes analisar todos os dados) e tende a debater-se o estacionamento e os autos. Desordenamento do território, taxa de desemprego superior à média nacional, população jovem e indústria a abalar, centro da cidade morto, e nada de debate. E nada de pedir ou apresentar acção. Sem existir, fica fácil.
Acresce dizer que o poder astuto é deles e interpola para os outros.
Acresce, porventura e todavia, quase afirmar que existe, paralela e igualmente, outra gente silenciosa, talvez muita, perfazendo um tipo de inconsciente colectivo, que muito trabalha e luta na cidade. Que quer cá ficar. Que quer que os filhos fiquem cá. Que a vive, mas que pensa e sente não a viver plenamente. Que a quer mais e que lhe quer mais. Todos talvez mereçam mais.
Acresce e cresce gente que nos quis e quererá trazer certezas absolutas. De uma forma tão, mas tão fácil. E todos sabemos como são sedutoras, verdades e facilidades. Mas, talvez a única para as duas… estas não existem, jamais existirão.

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