NA MORTE DE JOÃO TRANCA (JOÃO MARIA REIGOTA)...
«O Centro de Estudos do Mar e das Navegações Luís de Albuquerque - CEMAR (Figueira da Foz do Mondego e Praia de Mira) cumpre a sua dolorosa obrigação de anunciar publicamente o falecimento, em 15.05.2022, aos noventa e dois anos de idade, do seu Associado, e membro do seu Conselho Consultivo e Científico, o Tio João Tranca (João Maria Reigota, 1930-2022), um dos homens mais prestigiados e acarinhados da comunidade dos Pescadores da Praia de Mira — emblemático pescador (revezeiro) dos grandes "Barcos-do-Mar" antigos —, e que, para além disso, nos últimos anos havia também contribuído decisivamente, como artesão e artífice da Memória colectiva, para as iniciativas culturais e identitárias que ao longo de mais de duas décadas aí foram levadas a cabo pelo CEMAR e as entidades autárquicas locais, em parceria, para a dignificação e a salvaguarda dessa Memória.
Este grande homem, que nos honrou com a sua presença e com a sua colaboração, sempre franca e generosa, e que nos orgulhámos de ter tido no Conselho Consultivo e Científico da nossa associação científica e cultural, foi um homem corajoso e forte, que viveu desde a infância uma vida de sacrifícios e dificuldades — as circunstâncias materiais do que era então a comunidade dos pescadores da Praia de Mira não lhe permitiram aprender a ler e escrever, e por isso era iletrado. E, no entanto, apesar disso, veio a ser nos dias da sua vida uma das figuras mais prestigiadas da sua comunidade, e veio a ser reconhecido por todos quantos tiveram a ventura de com ele contactar pelo seu carácter, pela sua coragem, pela sua força e pelo seu exemplo de vida.
João Maria Reigota (Tranca), pescador, revezeiro e redeiro, nasceu em 2 de Fevereiro de 1930, na Praia de Mira. Desde a infância, nessa terra que era a sua, desenvolveu a sua principal actividade no âmbito da Pesca de Arrasto para Terra, a pesca local que os Pescadores desta e de outras localidades semelhantes da Beira Litoral (desde Espinho e o Furadouro até à Vieira) antigamente chamavam simplesmente "a Arte" e "a Companha", e que veio depois a ser designada legalmente pelas entidades estatais das capitanias e do Estado português com o nome oficial de "Arte-Xávega" (para além de, entretanto, erroneamente, ter sido chamada "Xávega", como se fosse igual à do Algarve [!], por muitos divulgadores, académicos, universitários, jornalistas, e outros "eruditos" que nada sabem, nem querem verdadeiramente saber, do mundo dos pescadores).
Tal como tantos outros pescadores da "Arte", à medida que tal tipo de pesca foi decaindo e diminuindo (desde o Furadouro até à Vieira), João Tranca veio a trabalhar também como pescador em traineiras de pesca da sardinha (na Figueira da Foz), e num barco alemão de pesca do bacalhau (na Alemanha e na Terra Nova). Do trabalho nas traineiras, em Portugal, viria depois a reformar-se, em 1989. A partir desse ano, voltou às companhas da "Arte" (Arrasto para Terra), na sua terra natal da Praia de Mira e na vizinha praia do Areão.
Para além do seu trabalho como pescador, em que desempenhou as importantes e corajosas funções de "revezeiro", em que se cotou como um dos mais considerados de sempre na Praia de Mira, foi também responsável por funções de "redeiro" (especialidade em que foi sempre apreciado como particularmente competente), e foi o proprietário de um dos últimos exemplares do tipo de embarcação chamada "Bateira do Mexoalho" ("Bateira de Buarcos" ou "Bateira da Praia de Mira") que existiram em Buarcos e na Praia de Mira (o seu exemplar foi precisamente o último que foi possível ser preservado para a posteridade, para um dia os vindouros virem a saber como era esse tipo de embarcação). Tratou-se da sua bateira "Lina Maria", que nos anos 80 do século XX foi obtida na Praia de Mira e meritoriamente salvaguardada pela Marinha Portuguesa, que então a levou, para fins museológicos, para o Museu de Marinha de Lisboa, onde desde então se encontra (e onde é apresentada com o nome de "Buarcos").»
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