"O seu nome não vem no mapa nem a terra tem qualquer referência, de área ou de população, nas enciclopédias. E, embora real, porque existe, vive e pulsa, parece não ter tido passado, nem presente. Contudo, não é terra morta que se possa assim, tão facilmente, ignorar.
Chama-se Gala. É uma aldeia de pescadores. Ou melhor: pouco mais é do que uma rua, que vai da Estrada ao Mar, e tem casas de um lado e do outro. Ao fundo e antes das dunas, que a separam do grande areal da praia, junta-se intimamente – quer dizer: sem uma nítida separação – a um lugar que tem o nome de Cova, embora a designação não seja exacta ou própria: as duas terras estão ao mesmo nível – o das águas do mar, quando estas andam calmas ou só bramem na ressaca.
Muito embora sem nome no mapa, a Gala está bem situada. Fica do lado sul da foz do Mondego. E, como as terras que seguem um rio até ao mar, é um prolongamento do Cabedelo – ou seja, aquele cabo de areia que se forma à barra dos rios. Do lado norte, há uma cidade e essa vem registada nos mapas de terra e nas cartas de mar – chama-se Figueira da Foz.
Mas não é de geografia que se trata.
Pouco mais de cem anos
Apesar de tudo e para situar o que se pretende dizer, vai bem um pouco de história, embora seja difícil precisar quando é que a aldeia nasceu ou porque se lhe deu aquele nome que tem.
Gala, aqui, não é vestuário de cerimónia, nem nada que se lhe compare. Em terra de pescadores e de embarcadiços, Gala é termo náutico ou expressão, marítima. Na verdade, com esse nome se designa uma vela à ré do galeão, mas também se indica o balanço de galear, que levanta e baixa o barco, da proa à proa.
É natural, portanto, que o nome da terra seja, na voz dos que lho deram, a imagem de um interior de barco, com os seus convés e cobertas, galeando entre o mar, por um lado, e as águas do rio, por outro.
De resto, Gala é nome recente. Tem pouco mais de cem anos. Para aí, cento e cinquenta, talvez.
Que se saiba, era terra despovoada, por altura das invasões francesas. Sem ponte, que só veio muito mais tarde, nem passagem expedida para a outra margem do rio, onde ficava a cidade, aquelas terras de areia e juncal logo pareceram aos invasores um bom sitio para o desembarque de tropas que lhe dessem luta.
Por isso, na sua política de ter as costas portuguesas guardadas por franceses, Junot, ou alguém por ele, mandou soldados para aquele bico de terra que só dava passagem pela foz difícil do rio ou pelas lodosas águas do estuário – naquela zona, ainda hoje, conhecidas pela corrente do canal.
Deste modo e desde a parte desabitada do Cabedelo, até às terras, ao sul, da Costa de Lavos e da Leirosa, onde já havia condições para «tomar casa e trabalho», andaram os franceses.
Por ali, patrulharam, assustaram e viveram com a gente da areia, segundo dizem, fazendo fugir os homens e deixando barrigas nas mulheres.
É de registar que, ainda hoje, os velhos, de hábitos e de linguagem mais castiça, usam uma expressão que se justifica na sua própria origem francesa e que é esta: sanfariem – que quer dizer «não tem importância» ou «não é nada». Enfim, «ça ne fait rien.
Teimosia de Gandarês
Claro que, para além das más condições de vida numa terra de dunas, havia ainda um factor que evitava a expansão dos povos vizinhos para aquela nesga de areia, postada à margem sul do Mondego. É que, ali, não havia água doce, potável. De beber.
Os franceses bem esquadrinharam todos os caminhos que levavam a terra ao mar, mas não encontraram mais do que reentrâncias onde abundava a água salgada do canal. Nem nascente, nem bica de água mansa.
Por isso, se bem que patrulhassem o quebra-mar da Cova, acampavam longe, pelo menos, em Lavos, que sempre era terra de verdes, mais do que de salinas.
Mas nem a obstinação do invasor – diz-se na região – é mais forte que a teimosia de um gandarês, tido, no litoral, como homem de terra-dentro.
Não há documentos –senão do que contam os velhos – mas parece que terá sido um rude machadeiro, vindo do interior daquela gândara, quem descobriu um fio de água doce a aflorar as areias cobertas de pinho, musgo, camarinhas e ervas ralas e agrestes.
O homem instalou-se no local, cortando lenha e vivendo da pesca.
Não consta nem o seu nome, nem que tenha formado família, mas, ao morrer deixou a outros, generosamente, o segredo da nascente. Foram estes – sabe-se que povoaram aquela terra, cabendo a alguns a aparelhagem da madeira, para fazer as primeiras casas; a outros, o desenvolvimento das artes de pescar ou de armar, no rio, á caça do borrelho e do maçarico; enquanto a tarefa de abrir um poço, no lugar da descoberta de água, ficou para o mais velho do grupo, homem já feito e com vasta família: o Tzé Maia.
Pelo cálculo dos antigos, tomando a memória das várias famílias que chegaram a este tempo, o poço ficou concluído entre 1815-1825. Vem daí, o povoamento. A Gala.
E, de facto, de muito pouco precisa o Povo para ter a sua terra. Na Gala, não foi preciso mais do que um poço!».
Só por uma simples coisa
Depois correram os tempos e as gerações. Uns ficaram do lado das águas do canal; outros foram povoar a Cova, do lado do mar.
Pela Gala, passou tudo o que abalou, perturbou ou redimiu este País: as conspirações, as revoluções, as Juntas; os liberais, os vintistas, os cartistas; os abrilistas, os caceteiros, os insurrectos. Mais tarde, os cabralistas e o início da ditadura, com o apuro do primeiro caciquismo. Depois, a Maria da Fonte, o degredo dos prisioneiros, a «lei da rolha», a luta dos regeneradores e dos progressistas.
Entretanto, aquela nesga de terra que parecia sobrar da corrente do canal, que puxava para o Sul, apenas tinha gente de trabalho: pescadores de companha e salgadeiras de pescado.
Depois da Carta e da política educacional que a acompanhou, a Gala conseguiu uma Escola. A catraiada aprendeu a ler, a escrever e contar.
Tanto daquela aldeia, como do lugar da Cova, muita gente foi para a vida do mar: pesca ou longo curso. Alguns emigraram, para a América e foram pescadores em Nova York ou calafates em S. Diego.
Pela Gala, passou a República, ainda no tempo em que se atravessava o rio numa barca de passagem. Só mais tarde veio a ponte, que está condenada, em breve, à substituição.
E tudo isto – lutas e tristezas, trabalhos e alegrias – só foi possível por uma simples coisa: o facto do poço do Tzé Maia pertencer, por ordem do que o abriu e murou, a toda a gente da região, levasse ela a água em bilha, talha, balde ou púcaro, e precisasse dela para beber ou cozinhar.
Mata até o que rega
E, assim, depois de uma longa digressão pelo passado, chego ao que verdadeiramente queria narrar.
Estive, há dias, na Gala e vim a saber que a água do poço do Tzé Maia está inquinada: mata até as couves que rega.
Perguntei: porquê? Explicaram-me que a construção e fixação, na Gala, de uma indústria de plásticos não foi tão perfeita que preservasse as infiltrações químicas nos terrenos de areia, onde está situado o poço.
Disseram-me que a fábrica, claro, já vem do fascismo e que de nada valeram, na altura, os protestos do Povo. O habitual.
Muita gente acha que a coisa não tem grande importância, porque o sítio já tem água canalizada e aquela da nascente não passa de um recurso dispensável.
Mas não é bem assim.
O poço deu mais do que água à terra, deu-lhe o nascimento. É por um lado a matriz e, por outro, a origem. Ao mesmo tempo, é a própria raiz da aldeia: sem o poço do Tzé Maia, a Gala e a Cova estavam ainda por existir. Como é, portanto, que isso não seja nada?
Claro que, também, na pequena terra de pescadores que não tem nome no mapa nem referência nas enciclopédias, mas vive, existe e pulsa, o capitalismo já destruiu o que pôde – até o passado de que passa a vida a dizer-se defensor.
O Povo da Gala tinha um monumento – que era um poço – e, pelo lucro, o capital envenenou-o.
O costume."
Adelino Tavares da Silva
Notas de António Agostinho, bisneto do Tzé Maia:
1 - Adelino Tavares da Silva, foi meu Amigo e um grande jornalista deste País, tendo chegado a ser Director do extinto «O Século», a seguir ao 25 de Abril de 1974. Quando morreu pertencia ao quadro de jornalistas do também já extinto «O Diário». Adelino Tavares da Silva tinha raízes familiares no nosso concelho, pois o seu Pai – o Comandante Rainho – era da Gala.
2 - O Tzé Maia, «o dono do poço que pertencia a toda a gente que precisasse de água para beber ou cozinhar», era o meu bisavô materno. Tenho uma pena imensa de não ter conhecido o meu bisavô Tzé Maia, pai de uma mulher extraordinária: a minha avó Rosa de Jesus Reis – a Ti Maia, que morreu «de velhice», a um mês de perfazer cem anos de vida.
3 - Esta história do jornalista Adelino Tavares da Silva, já falecido, foi publicada no Jornal "O Diário", no dia 20 Janeiro de 1978. «O Poço do Tzé Maia», eventualmente, pode não ter total rigor histórico, mas que é uma bela história, lá isso é. Como diria Adelino Tavares da Silva, «é a contar estórias que a gente se entende».
4 comentários:
Belo texto de um dos últimos românticos do chumbo tipográfico, que com tanto entusiasmo, também nos "ensinou a escrever"... Era um bon-vivant de esquerda, amante de tantos prazeres, praticante de demasiados (?) excessos, ilusionista da palavra, actor de mil gestos, animador de tertúlias que varavam as madrugadas.
tão bem que eu me lemro desse poço.
Não como poço de tzé maia, mas como poço da te rosa maia.
Se há gente que nada fez, nem virá a fazer por esta terra, porque motivo não tem esta herança viva o seu nome ligado uma qualquer rua ou ruela desta terra?
Será por ter sido avó deste que tão bem escreve?
E e' por isso... que irei fazer uma surpresa 'a avo'... uma prendinha linda, linda!
Shiu! Nao digas nada e' surpresa...
Beijinhos e ate breve!
"É a contar estórias que a gente se entende"...estórias lindas e verdadeiras como esta,que muito contribuem para conhecermos melhor o nosso passado.
Neste caso o passado da nossa terra e dos nossos ascendentes.
Bem haja ao autor,que infelizmente não cheguei a conhecer.
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