quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Carta aberta a um anónimo escandalizado


Há muitos anos, o poeta Louis Aragon, do grupo surrealista, publicou um panfleto em que perguntava a quem o lia se já alguma vez tinha esbofeteado um cadáver. Se não, que se dirigisse a determinada capela onde estava, em câmara ardente o corpo do escritor, (laureado com o prémio Nobel), Anatole France,
acabado de falecer…
Mais ou menos na mesma altura, Almada Negreiros escrevia:
“Morra o Dantas, morra, PIM.”
Muitos anos depois disto o surrealista André Breton morria com o desgosto de o ”escândalo já não ser possível”… Pois sim, numa época em que piadas sobre Deus, o Papa, a Santa madre Igreja, a Arte, a Cultura, o poder, etc, já não faziam chiar ninguém… Ora bem, o escândalo é ainda possível sim senhor, mas pequenino, ao nosso nível, o da pequena blogosfera figueirense, e manifesta-se. Anonimamente, incógnito, na clandestinidade, por pessoas que, se calhar, nunca leram uma linha do velho transgressor, nem lhe compraram um livro ou um quadro ou sequer lhe entenderam as boutades, e se limitam apenas a ler-lhe o obituário no jornal humedecido pelas lágrimas de anónimos ou conhecidos crocodilos…
Ora o escândalo é possível sim senhor, e vem a propósito de um simples e pelos vistos, mal conseguido cartoon sobre a morte de um escritor surrealista…
(o velho pândego deve estar sacudidinho de riso).
Um cartoon, como sabe, é um desenho que procura sintetizar enfática ou exageradamente uma ideia por vezes complexa, com o recurso ao menor número de meios possível, tendo como objectivo provocar o riso ou, se possível, a reflexão. É tanto mais eficaz quanto, muitas vezes,
mais explicitamente equívoco.
Os surrealistas amam o equívoco, o paradoxo, o amor louco, a beleza convulsa,
o humor negro… e o escândalo!
Eu fico incomodado que este cartoon (visivelmente infeliz) o senhor incógnito escandalizado o tenha entendido exactamente às avessas das minhas intenções.
O meu lamento, em memória de Cesariny, citando Breton:
“Um filósofo que eu não entendo é um cretino”;
Ora, não sendo eu um filósofo, está à vista que desta vez,
só desta, não me entenderam…
Para esses que não me entenderam e especialmente para si, Sr. Anónimo, faço outro desenho, um esboço de retrato possível da verdadeira destinatária do infeliz manguito.
Vale

Fernando Campos

4 comentários:

Anónimo disse...

Este anónimo fez-me lembrar Henri Matisse, um dos grandes vultos da pintura do século XX, a par com Pablo Picasso, e um episódio que constará, sem dúvida, dos anais da estupidez:
Numa das suas exposições, um anónimo, como qualquer outro, metido a entendido e a apreciador do belo sexo, aproximou-se do artista e disse-lhe: "Olhe, eu se visse uma mulher como você as pinta, eu fugia". A resposta do velho senhor: "Meu bom homem, eu não pinto mulheres, pinto quadros".

Anónimo disse...

O Matisse a par com o Pablito? Quê dupla? Hombre...ai sempre um espirituoso que borra la pintura! Borrada la pintura, vende-se e só patos bravos como esse de que fala o senhor baku tem dinheiro para comprar pintura. Se não forem eles os pintores só pintavam, não comiam, não percebem de pintura mas compram-na! Fazem viver e dão de comer e presevam as obritas de arte-os quadros- com mulheres enquadradas!

Anónimo disse...

Sr. borra a pintura, não faça um juízo tão negativo dos burguesotes, que até são inteligentes muitos deles, a maioria deles que investe em arte sabe mesmo apreciar. Outros deles é que se armam ao cágado mas também têm dinheiro para isso.
Mas olhe, não menospreze o inimigo.

Anónimo disse...

Concordo que é sinal de inteligência comprar arte, é também um sinal de inteligência saber aplicar os cabedais em algo que pode tornar-se ( quem sabe, não é?) num bom investimento futuro. Mas, até para isso, é preciso um certo faro, que se não se tem, paga-se a quem o tenha!
Ai amigo Baku, o mercado de arte e o mercado de capitais andam de mãos dadas, nós sabemos, a burguesia, de que V. Exª fala, sabe bem que o dinheiro debaixo do colchão não se reproduz! É um círculo vicioso, mas que se há-de fazer? A questão da arte para o povo, era mais no tempo do António Ferro, que modernista, soube reinventar o foclorismo, a arte fascista italiana e o pictoresco rural português, e assim deu a comer, aos intelectuais da época,a verdadeira arte popular. Outro círculo vicioso, caro amigo, o poder a controlar o gosto estético, tal como aconteceu noutras paragens do nosso globo!Como vê, teriamos conversa para meses...! Então, bem haja, caro amigo Baku.