1. Vinte ou trinta habitantes de um povoado despejavam água para o fogo e tentavam sufocar a vegetação incandescente. Os repórteres, que chegaram antes dos bombeiros, fizeram o que fazem os repórteres: ligaram a câmara, enquanto a população tossia no meio das brasas para salvar paredes, hortas e animais. No fim, nem uma recriminação: nem contra os bombeiros que se atrasaram, nem contra os jornalistas que ficaram a ver, nem contra o ministro que os ignorou. Só bonomia, equanimidade e esgotamento. Por muito que viva não deixarei de admirar a física dos nossos pategos. Atiram-se para as chamas, enterram os calcinados e depois vão comer uma bucha ou votar no deputado Abreu Amorim. (daqui)
2. Foi notícia de abertura nos telejornais dos três canais: "uma bombeira da Corporação dos Bombeiros Voluntários de Alcabideche sucumbiu às chamas no incêndio do Caramulo e acabou por falecer".
A notícia assim: o artigo indefinido "uma" bombeira e um facto narrado com objectividade "acabou por falecer".
As pessoas assistiram, teceram algum comentário e passaram a ouvir a notícia seguinte, sobre os subsídios de doença.
Tocou a sirene em Alcabideche e a bandeira está a meia haste. Por aqui há uma aldeia de luto.
"Uma bombeira" não era um artigo indefinido seguido de um substantivo: tinha rosto, tinha corpo, tinha voz e um jeito desembaraçado de andar.
Tinha história de vida, família, amigos. Tinha nome.
Morreu a Ana Rita, vinte e poucos anos, mãe da Madalena e apesar de ter sido notíicia de abertura dos telejornais para esta aldeia não era suposta ser uma notícia.
Morreu uma de nós. (daqui)
3. A morte de uma bombeira de Alcabideche, de 22 anos, registada hoje no Caramulo, eleva para três o número de bombeiros mortos este ano no combate ao fogo. Impressiona como todos os anos por esta altura se fazem os mesmos diagnósticos depois de se cometerem os mesmos erros e de se repetir a mesma incúria crónica, em particular este ano, um ano em que o Governo também, como eles gostam de dizer, "poupou" nos meios de combate e no financiamento das corporações de bombeiros. Impressiona a hipocrisia das reacções de governantes e de autarcas compungidos. Revolta toda a insensibilidade que tentam dissimular com as palavras de circunstância que trazem sempre na ponta da língua. E o cúmulo da insensibilidade , evidência de todo o desprezo pela vida humana desta gente perigosa, chega-nos da Madeira: os doentes internados na ala de toxicodependentes do Hospital dos Marmeleiros, naquela ilha, ao contrário dos restantes doentes, não foram evacuados durante o incêndio que se aproximou da unidade hospitalar durante o fim-de-semana, noticiou esta noite a RTP. Dir-se-ia que Hitler não faria melhor, mas Hitler tinha um exército ao seu serviço. Alberto João Jardim não precisa de exército nenhum. Tal como os seus colegas continentais, conta com a indiferença e com a apatia de um povo incapaz de ter reacções de gente. Grande admiração: o horror está a passar por aqui. (daqui)
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