domingo, 25 de abril de 2021

A liberdade tem um gosto de maçã

Via Público
E
sta foi a história que contei aos meus filhos ontem à noite: 
“Era uma vez, num reino distante, um rei que tinha medo do seu povo. A verdade é que este rei era tão medroso que a única forma de se sentir seguro no trono era controlando tudo o que as pessoas faziam e diziam. Como não o podia fazer sozinho (afinal ele era só um), um dia decidiu chamar os seus soldados mais fiéis e, com a sua ajuda, criou uma polícia que servia para vigiar os seus súbditos. Essa polícia espalhou-se por todo o lado e passou a registar tudo o que via para depois contar ao rei. Às vezes, essa polícia descobria coisas importantes, mas, na maior parte do tempo, tudo o que fazia era denunciar, prender e torturar quem criticasse o seu soberano. 
Mas conseguem adivinhar o que é que assustava mais o rei dessa nação longínqua? Não eram armas ou pessoas zangadas. O que ele temia, com todas as suas forças, era o conhecimento. Porque ele sabia que o conhecimento era o único alicate que poderia cortar as amarras invisíveis do medo com que ele mantinha preso o seu povo. E foi por isso que o rei proibiu muitos livros e muitas canções. No reino da nossa história, o povo só podia ler e ouvir as músicas que o rei escolhia. Era um reino muito triste e cinzento, sabem? 
Além disso, o rei era também muito injusto. Imaginem que houve um dia em que mandou prender um menino muito pobre que, cheio de fome, subiu a uma árvore para apanhar maçãs. Como a macieira estava dentro do quintal de uma casa muito rica, mesmo que perto do muro, a polícia levou o menino e deixou-o uma noite sem comer numa cela fria. E este menino não era o único com fome, nada disso. O reino estava cheio de pessoas tão pobres que, muitas vezes, nem tinham dinheiro para comer. Na casa do menino das maçãs, sempre que havia peixe, uma sardinha tinha de ser dividida entre duas pessoas, imaginem. E na maioria das noites tudo o que comiam era um caldo de couve com pão que os fazia deitar com a barriga ainda a roncar de fome. 
Os meninos também iam muito pouco à escola porque tinham de começar a trabalhar cedo para ajudar os pais. Muitos deles nunca sequer aprendiam a ler e a escrever. Mas enquanto o povo vivia com fome, os cofres do reino estavam repletos de ouro e algumas das poucas pessoas ricas do país achavam que esse ouro, trancado no palácio real e do qual o rei muito se orgulhava, era mais importante do que dar ao povo condições de vida dignas. 
As pessoas viviam infelizes e descontentes. O rei, algumas vezes, tentava distraí-las do seu descontentamento e entretinha-as com o futebol, com a missa e com alguns programas de televisão e rádio que ele próprio escolhia. Mas as pessoas queriam mais e estavam demasiado cansadas. Para além da fome, da pobreza, das más condições de habitação e dos fracos cuidados de saúde, toda a gente estava cansada de não ser livre. E, apesar de ninguém poder gritar, o burburinho foi aumentando. 
Até que um dia, cansado da vida difícil de todos, um grupo de soldados decidiu criar um plano para mandar embora o rei e para devolver ao povo a liberdade. E sem o rei imaginar, fazendo tudo no maior segredo, num dia como o de amanhã, 25 de Abril, usando canções como sinal (sendo que uma delas tinha até sido proibida pelo rei), estes soldados conseguiram o que antes parecia impossível. O rei, quando viu tantos soldados, percebeu que não podia fazer nada e fugiu para outro país. Já o povo ficou tão feliz por ser finalmente livre que encheu as ruas com centenas de cravos vermelhos. 
O reino longínquo mudou muito depois desse dia. Não se tornou um reino perfeito, é claro. Mas, apesar de alguma turbulência inicial, aos poucos tudo melhorou e a pobreza tornou-se menos marcada, havia menos barriguinhas a roncar com fome à noite, mais meninos nas escolas e casas melhores e mais dignas. Também se construíram hospitais, mais gente chegou às universidades e cada um passou a ouvir a música que mais gostava e a ler os livros que mais lhe interessavam sem ter ninguém a proibir. 
Às vezes, muito de vez em quando, alguém falava no velho rei. E quando alguns mostravam saudades desses tempos cinzentos para a maioria, o menino das maçãs que, entretanto, se tinha tornado um homem, acertava-lhes com um livro na tola e mandava-os ter juízo. No que dependesse dele, não voltaria à sua terra um rei de tão má índole. Ele sabia bem quão doloroso era viver em ditadura e jurou que falaria sempre aos seus sobre a importância da liberdade.” 
E depois, quando eles adormeceram e os vi tão perfeitos, tranquilos e amados, parei uns minutos para pensar no menino das maçãs desta história. Hoje, com dois e quatro anos, o João e o Pedro são demasiado pequenos para compreenderem que nunca existiu um rei, que o reino distante é o país onde nasceram e vivem e que o menino das maçãs é tão real que eu ainda carrego o apelido dele. Mas daqui por alguns anos, num 25 de Abril como o de hoje, vou contar-lhes que esse menino, na verdade, se chamava Manuel e era o bisavô deles. O bisavô de olhos muito azuis e pele tão clara que parecia transparente. O bisavô que ficava ofendido quando, inocentemente, algum neto dizia “tenho fome” porque isso era quase uma blasfémia. Sabíamos lá nós o que era fome, dizia. Mas ele sabia, soube durante demasiados anos. Ele que comia os caldos de couve, que bebia água para encher a barriga e que se acostumou tanto às dores no estômago que a fome provocava que já as tratava quase como amigas. O bisavô Manuel que não sabia ler nem escrever e que olhava para os bifes de vaca no prato com o mesmo ar de encantamento com que eu olhei pela primeira vez o tecto da Capela Sistina. O bisavô que todos os anos, enquanto as pernas o deixaram, descia a rua até à Boavista para ver desfilar os carros da câmara enfeitados de cravos e que no 1.º de Maio nem a horta regava por ver nele um dia sagrado. 
Um dia, no alto da minha inocência dos 11 anos e depois de uma aula em que falámos no assunto, perguntei-lhe se era comunista. E ele olhou para mim muito sério, deu-me um calduço com aquelas mãos enormes que tinha e respondeu-me que essas coisas não interessavam para nada. Porque o partido dele, dizia-me, era a liberdade.
E essa foi a minha herança política. O menino que foi castigado por subir a uma árvore e apanhar maçãs foi o avô que me ensinou que, custe o que custar, o mais importante é sermos livres. Como a gaivota, a papoila ou o menino que não queria combater. E essa é a lição que quero transmitir e a herança que pretendo deixar a estes dois pequeninos que se entregaram sem medo nos braços de Morpheu. 
As cores partidárias na nossa família pouco importam e o nosso voto não tem nem nunca teve militância. Agora que penso nisso, acho até que nunca votei duas vezes seguidas no mesmo partido. Mas votei sempre em liberdade. Porque é aí, e só aí, que militam os descendentes do menino das maçãs. Na liberdade. Sempre na liberdade. Pela liberdade sempre.

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