Se há palavra hoje abastardada é a palavra "coragem". De um eleito que faz o contrário do que prometeu dizem os apaniguados que é "corajoso", apesar de um dos sinónimos mais nobres de "coragem" ser "constância"; o mesmo ou outro eleito conformam servilmente e obedientemente as suas politicas a ditames externos, e isso é "coragem" e não cobardia; medidas de austeridade impostas aos mais pobres e vulneráveis são "corajosas"; o destempero de uma velha política, agora dita "senadora", contra o direito à saúde dos mais idosos é um "acto de coragem"; um presidente titubeante que assina, sem pestanejar, o que lhe põem à frente e tolera a subversão de valores e direitos que jurou defender é, também ele, "corajoso".
"Coragem" chegou ao português vindo do francês"courage" que, por sua vez, deriva de "coeur", "coração", em cujas cavernas habitam, na generalidade das culturas, não só a inteligência e a sabedoria como a própria divindade, além de "disposições interiores" como a constância, o ânimo ou a rectidão, em oposição ao que é traição, pusilanimidade e fraqueza e pequenez de carácter .
Assim, "corajosos" são hoje os que, humilhados e ofendidos, sobrevivem sem ceder à tentação da servidão; os que não traem por um prato de lentilhas ou uma assessoria; e todos aqueles (jornalistas, magistrados, funcionários, cidadãos em geral) que, em tempos de debandada moral, teimam, apesar de tudo, em manter-se inteiros.
Via Jornal de Notícias
António Agostinho, o autor deste blogue, em Abril de 1974 tinha 20 anos. Em Portugal havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, nos livros, no teatro, no cinema, na música, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado. Havia medo. O ambiente na Cova e a Gala era bisonho, cinzento, deprimido e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto. O preto era a cor das suas vidas. Ilustração: Pedro Cruz
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