"Leu-se no Diário de Notícias de 2 de setembro de 2016: "foi em Moçambique, em meados dos anos 80, que Vladimir Ivanovitch Pliassov percebeu que, além da pátria russa, "o único país da Europa onde poderia viver era Portugal". Mais adiante, a reportagem cita uma frase deste professor russo que explica a afirmação anterior: "Lá, os portugueses viviam com as mesmas condições que nós. Partilhávamos carnes, cervejas, as coisas que tínhamos. Tínhamos uma relação aberta. Por exemplo, com os alemães, que moravam no nosso prédio, não era a mesma coisa".
Provavelmente a ideia que Vladimir Pliassov fazia da hospitalidade portuguesa, que o motivara a vir viver para Portugal em 1988, há 35 anos, ruiu a 10 de maio passado, quando recebeu um e-mail do reitor da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão, a informá-lo que estava afastado do Centro de Estudos Russos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Primeiro houve um artigo escrito por dois autoidentificados ativistas ucranianos, publicado no dia 8 de maio no Jornal de Proença. Esse artigo foi citado na noite do dia seguinte na SIC-Notícias pelo comentador José Milhazes. No início da madrugada, o mesmo artigo foi ainda republicado no jornal Observador.
Amílcar Falcão, na manhã subsequente, demitiu o professor de russo, que desde que se reformara trabalhava gratuitamente na instituição.
Amílcar Falcão demitiu o professor de russo sem o ouvir, sem falar com ele, sem lhe dar qualquer hipótese de argumentação.
Amílcar Falcão, reitor da Universidade de Coimbra, recusou o mais básico direito à defesa de alguém, volto a recordar, que trabalhou para aquela instituição 35 anos e que ajudou a fundar o Centro de Estudos que aquela mesma universidade decidiu criar em 2012, era Falcão vice-reitor.
Amílcar Falcão tratou, isso sim, de escrever um comunicado para a imprensa a anunciar o afastamento do professor de russo denunciado na TV.
Amílcar Falcão decidiu, ainda, nessa mesma manhã de 10 de maio, prestar declarações a alguns órgãos de comunicação social para espalhar a novidade.
No dia seguinte, Amílcar Falcão recusou dizer a um jornalista da agência Lusa quais os factos em que se suportou para ter tomado tal decisão. Também recusou dizer quando soube de tais alegações. E disse achar adequado não ter aberto um processo disciplinar ou de averiguações que permitisse uma investigação séria às suspeitas levantadas.
As acusações feitas por Viacheslav Medvediev e Olga Filipova, os autores do artigo inicial, secundadas depois por José Milhazes, são, em resumo, estas: Vladimir Pliassov (que nega tudo) fazia propaganda pro-Putin no Centro de Estudos Russos e tinha uma ligação aos serviços secretos russos através da Fundação Russkyi Mir, uma espécie de Instituto Camões russo com quem a Universidade de Coimbra teve um protocolo de financiamento, cancelado em dezembro de 2021.
Para sustentar essas acusações são apresentadas estas hipotéticas provas: uma foto de um quadro do centro com as caras de 66 escritores, entre os quais estão dois autores extremistas que defendem que a Ucrânia é russa; a exposição e utilização no interior do edifício ou em iniciativas do Centro de símbolos nacionais russos proibidos em países inimigos da Rússia ou com referências à igreja russa; a existência de fotografias de jovens, supostamente lá estudantes, que dizem que são naturais de regiões independentistas, como Donetsck, em vez de se dizerem nascidos na Ucrânia; duas fotografias de 2017 do professor russo sentado num jantar no Kremlin com centenas de pessoas (suponho que da tal Fundação Russkyi Mir, eles não explicam) e onde aparece Vladimir Putin a discursar.
Mesmo se verdadeiras - nem vou discutir isso - as provas apresentadas parecem-me demasiado fracas, quer para demonstrar a propaganda e a espionagem, quer para suscitarem uma decisão tão draconiana e intempestiva como a que Amílcar Falcão tomou, sem direito a defesa, sem direito a um procedimento justo, como todas as nossas leis e a Constituição determinam.
Amílcar Falcão não usou práticas decorrentes de uma cultura democrática para resolver o problema que defrontou; não usou sequer o bom senso; usou um expedito processo ditatorial.
Dado o que se passou, não se deve agora discutir se Amílcar Falcão pode continuar a ser reitor de uma Universidade pública, de uma instituição do Estado português, que é um país de direito democrático?
Eu acho que sim, acho que se deve debater o emprego de Amílcar Falcão - dando-lhe, porém, o direito, não só democrático, mas de decência humana mínima, de ele poder defender-se em condições, coisa que ele negou a Vladimir Pliassov, o professor de russo que adorava a hospitalidade dos portugueses."
Fica a pergunta que dá o título ao texto escrito por Pedro Tadeu no Diário de Notícias: "O reitor da Universidade de Coimbra deveria ser demitido?"