Realiza-se hoje na Biblioteca Nacional um colóquio que marca as comemorações dos 40 anos da morte da autora de Ela é Apenas Mulher, uma voz insubmissa durante a ditadura do Estado Novo. Quarenta anos depois da sua morte, a escritora portuguesa Maria Archer (1899-1982), autora de Ela É Apenas Mulher, romance considerado escandaloso em 1944, mas também de Ida e Volta duma Caixa de Cigarros (1938) e de Casa Sem Pão (1947), censurados e apreendidos pela PIDE durante a ditadura do Estado Novo, além de vários livros sobre África, onde viveu, e de outros, como Os Últimos Dias do Fascismo Português, refectindo o seu trabalho como jornalista, tem um dia inteiro dedicado a si e à sua obra na Biblioteca Nacional de Portugal.
O colóquio internacional Maria
Archer: reflexos e reflexões, que tem
entre os seus convidados investigadores de universidades portuguesas,
brasileiras, espanholas, francesas e
norte-americanas, acontece hoje no
auditório da Biblioteca Nacional de
Portugal (BNP), em Lisboa, a partir
das 9h30. Tem entrada livre, sujeita
a inscrição, e terá transmissão online
via Zoom (o ID da reunião é 848 6544
3846 e a senha de acesso 096452).
“Maria Archer terá o reconhecimento que ela merece”, diz ao jornal Público numa
conversa telefónica a académica brasileira Elisabeth Battista, autora de
Maria Archer — o legado de uma escritora viajante (Edições Colibri). É uma
das convidadas deste colóquio que
abordará as facetas fundamentais
desta autora de romances, novelas,
contos, crónicas, ensaios, peças de
teatro e literatura infantil, sobre quem
o crítico João Gaspar Simões escreveu
em 1949: “Abram os olhos, Exmos.
Senhores, têm diante de vós um escritor, porque os seus contos embora
tenham sexo — nas observações que
a denunciam e nos temas que tratam
— não o tem: são portanto do sexo
nobre, o primeiro sexo! […] Maria
Archer afirma-se indiscutivelmente
um dos nossos primeiros contistas e
um grande escritor português!” (na
crítica ao livro Há-de Haver uma Lei). No Portugal “provinciano e moralista dos anos ditadura fascista, com uma censura
atenta às entrelinhas”, como escreveu Maria Teresa Horta no prefácio
de Ela é Apenas Mulher, Maria Archer
tinha uma “linguagem invulgarmente livre para a época”.
Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira, conhecida como Maria Archer (Lisboa, 4 de Janeiro de 1899 - Lisboa, 23 de Janeiro de 1982), foi uma escritora portuguesa.
Nascida em Lisboa, mudou-se para Moçambique com os pais e seus cinco irmãos em 1910. Só terminou a escola primária aos 16 anos, tendo para isso que insistir com seus pais, que achavam desnecessária a sua formação. A família voltou para Portugal em 1914, mas dois anos depois estava novamente na África, desta vez na Guiné-Bissau.
Em 1921, enquanto o seu pai regressava a Portugal, Maria Archer casou-se com o também português Alberto Teixeira Passos. O jovem casal fixou residência em Ibo. Cinco anos mais tarde, após o surgimento do Estado Novo e a crise subsequente, o marido perdeu o emprego num banco e os dois mudaram-se para Faro. Em 1931, divorciaram-se.
Separada, foi morar com os pais em Luanda, onde iniciou sua carreira literária. Publicou a novela Três Mulheres, num volume que continha também a aventura policial A Lenda e o Processo do Estranho Caso de Pauling, de António Pinto Quartin.
Voltou para Lisboa, onde iniciou um período de intensa actividade, produzindo obras sobre a sua vivência na África. Em 1945, aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD), grupo de oposição ao regime salazarista. A partir daí as suas obras passaram a ser censuradas. O romance Casa Sem Pão (1947) foi apreendido. Sem condições de viver da sua produção intelectual, refugiou-se no Brasil, onde chegou em 15 de julho de 1955.
No exílio, colaborou com os jornais O Estado de S. Paulo, Semana Portuguesa e Portugal Democrático e na Revista Municipal de Lisboa (1939-1973). Alternou entre a literatura de temática africana e as obras de oposição à ditadura portuguesa. Também se encontra colaboração da sua autoria na revista Portugal Colonial (1931-1937).
Voltou para Portugal em 26 de Abril de 1979, internada na Mansão de Santa Maria de Marvila, em Lisboa, um asilo onde passou seus últimos três anos de vida.
Durante a vida, Maria Archer foi uma inconformista, consciente das discriminações e das injustiças, em geral, e, em particular, das que condicionavam o sexo feminino, numa sociedade retrógrada e, como se diria em linguagem actual, "fundamentalista", em que o regime impôs a regressão às doutrinas e práticas de um patriarcalismo ancestral.
A escrita, servida pelos dons de inteligência, de observação e de expressividade foi para Maria Archer uma arma de combate político. Como disse Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante".
É um combate em que a sua vida e a sua arte se fundem - norteadas por um ostensivo propósito de valorização dos valores femininos, de libertação da mulher e, com ela, da sociedade como um todo.
Ela é já uma Mulher livre num país ainda sem liberdade - coragem que lhe custou o preço de um longo exílio ...
Maria Archer é uma grande escritora E pode ser lida apenas como tal. Mas permite também diversas outras leituras.
Uma leitura sociológica, antropológica, política...
Ninguém como ela escrutinou e caracterizou o pequeno mundo da sociedade portuguesa da primeira metade do século XX, das famílias, pobres ou ricas, decadentes ou ascendentes, aristocratas, burguesas, "povo" - todos imersos na nebulosa de preconceitos de género e de classe, de vaidades, de ambições, de prepotências e temores...
"Aurea mediocritas", brandos costumes implacáveis... o mundo de contradições de um Estado velho, que se chamava Estado Novo.
Ou uma leitura feminista...
Ninguém como ela conseguiu corroer essa imagem da "fada do lar", meticulosamente construída sobre a ideia falsa da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia corporativa do regime), da falsa brandura do autoritarismo e da subjugação no círculo pequeno da família como no mais alargado, o do País.
Maria Archer é uma retratista magistral da mulher e da sua circunstância... O rigor da narrativa, a densidade das personagens, a qualidade literária, só podiam agravar, aos olhos do regime, a força subversiva da denúncia. Na crueza da palavra. Na nitidez do traço...
O regime não gostou desses retratos femininos, como não gostava da Autora. Primeiro, tentou desqualificá-la, desvaloriza-la. Sintomática a opinião de um homem do regime, Franco Nogueira, que em contra-corrente , num texto com laivos misóginos, a apresenta como apenas uma mulher a falar de coisa ligeiras e desinteressantes, (como o destino das mulheres....).
Sintomático também que a crítica seja divulgada pela própria editora da romancista, a par de tantas outras, todas de sentido contrário.
Não tendo conseguido os seus intentos, o Poder passou à acção: os seus livros foram apreendidos, os jornais onde trabalhava ameaçados de encerramento... Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última e infindável aventura de expatriação, de onde só viria, envelhecida e fragilizada, para morrer em Lisboa.
Mas o desterro não foi pena bastante!
Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher" afirma que Maria Archer foi deliberadamente apagada da História.
Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer. Caracteriza-a na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e apresentou em sociedade, como viveu a vida inteira, até ao fim...
Ousou ser Maria Archer, sem pseudónimos...Noutra postagem, esta de 24 de Agosto de 2015, OUTRA MARGEM, escreveu sobre a autora hoje homenageada em Lisboa. Recordar a Aldeia
Maria Archer, grande escritora, homenageada sábado passado, na Cova-Gala, em 1938 na sua novela "Entre Duas Viagens" escrevia assim sobre nós.
"No primeiro domingo de Janeiro faz-se na Cova a romaria anual a São Pedro, padroeiro dos pescadores. No extremo da povoação, num ermo desabrigado, ergue-se a pequena e humilde capela do santo. Em redor alongam-se as dunas cobertas de juncos, enquadradas pelo pinhal e pelo mar. S. Pedro, se viesse dos areais da Judéia, com as suas rústicas sandálias de caminheiro pobre, as suas barbas austeras, a face tostada pelo ar salgado, sentir-se-ia à vontade entre a gente da Cova e no seu agreste cenário de deserto ribeirinho".