Um texto de José Manuel Correia Pinto, que merece ser lido com atenção e objecto de reflexão.
"Em que país vivemos nós?
Que país é este em que a Procuradoria-Geral da República emite um comunicado em que dá conta de que está em curso uma investigação incidindo sobre concessões de exploração de lítio, um projeto de uma central de energia a partir de hidrogénio, um projeto de construção de “data center” desenvolvido na Zona Industrial e Logística de Sines, e que ela envolve membros do governo e até o Primeiro-ministro? E em que, mais se dá conta, que tal investigação está sendo levada a cabo mediante a realização de buscas domiciliárias e não domiciliárias, nos espaços do chefe de gabinete do Primeiro-ministro, no Ministério do Ambiente e Acão Climática, no Ministério das Infraestruturas, por poderem estar em causa, designadamente factos suscetíveis de constituir crimes de prevaricação, corrupção ativa e passiva, de titular de cargo público e tráfico de influência, tendo, em consequência, sido emitidos mandados de detenção fora de flagrante delito, por perigo de fuga, continuação da atividade criminosa, perturbação do inquérito e perturbação da ordem e tranquilidade públicas, do chefe de gabinete do Primeiro-ministro, do Presidente da Câmara Municipal de Sines, de dois administradores da sociedade “Start Campus” e de um advogado consultor/contratado por esta sociedade; sendo ainda constituídos arguidos outros suspeitos da prática de factos investigados, designadamente o Ministro das Infraestruturas Presidente do Conselho Diretivo da Agência Portuguesa do Ambiente?
Se a ação discricionária ou mesmo arbitrária do Ministério Público neste género de casos e análogos é jurídica e politicamente condenável, quanto mais não fosse por um passado recheado de espetáculos de baixo nível que põem em causa a honra e a dignidade dos arguidos, desprezando valores fundamentais inscritos na nossa Constituição, como as decisões finais deste tipo de processos têm sobejamente demonstrado, imagine-se o que não se poderá dizer quando Ministério Público desce ao nível mais rasca de uma filial de uma estação de televisão de escândalos, ao terminar o seu comunicado, dizendo:
“No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente”.
O QUE É ISTO?
“A invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro” – Mas o que é isto? Onde chegou a impudência do Ministério Público? Invocar publicamente o que dizem os seus detidos (mas o processo não está em segredo de justiça?), por via de uma qualquer referência ao Primeiro-ministro, cujo contexto ou mesmo a veracidade se desconhecem, para lançar a odiosa suspeita de que está envolvido em traficância política, corrupção e tudo o mais que constitui a ladainha habitual de uma extrema-direita reacionária, diariamente refletida nos noticiários de uma qualquer estação rasca de televisão de notícias, é algo com que até hoje nunca nos tínhamos deparado.
E o caso ainda é mais grave se, como me disseram, entre a primeira ida do PM ao PR e a segunda, o PR foi também visitado pela Procuradora Geral da República que não poderá deixar de lhe ter dito que o PM também estava “implicado”. O que significa que Marcelo, a ter acontecido este contacto, não pode igualmente deixar de estar implicado no modo soez como a notícia acabou por ser dada.
Como isto passou todas as medidas, tem de ter consequências. Se já é gravíssimo que o MP e os que com ele decidem possam invocar arbitrariamente legislação excecional para deter suspeitos, reconduzindo-nos assim a um tempo semelhante ao do “império da PIDE”, mais grave se torna ainda que o MP – na impossibilidade de o mesmo poder fazer relativamente ao Primeiro-ministro -, lance a suspeita própria de um político vulgar para alcançar os objetivos que efetivamente já alcançou!
Este texto, para que não haja dúvidas, não tem nada a ver com simpatias políticas, seja com o PS seja – ainda muito menos – com as políticas dos seus governos. E é exatamente neste contexto que a seguir se apontarão os principais responsáveis por esta e outras idênticas situações que permanentemente têm ficado impunes.
Assim, o primeiro grande responsável é o Presidente da República, a quem cabe cumprir e fazer cumprir a Constituição, garantindo o regular funcionamento das instituições. Marcelo Rebelo de Sousa que transformou a Presidência da República num espaço de comentário político-social-futebolístico, etc., que a propósito e a despropósito em tudo se mete, mesmo correndo o risco de fazer tristes figuras, como ainda há dias aconteceu com um assunto muito sério, não tem manifestado, ao longo do seu mandato, a menor preocupação por este desvario funcional do Ministério Publico, desde as violações do segredo de justiça, passando sempre pelo aviltamento público dos visados e pelo penoso espetáculo do seu julgamento público, até à incompetência profissional e inconsequência das investigações realizadas. No presente caso agravadas pela cúmplice atuação com a PGR, quanto ao modo como a notícia é dada publicamente. Sobre este tema é que Marcelo deveria reunir o Conselho de Estado e buscar nele os pareceres que sua capacidade de ação política, pelos vistos, não alcança.
Em segundo lugar, o atual Primeiro-ministro, António Costa, tem igualmente a sua grande dose de responsabilidade por, a coberto do oco refrão “à Justiça o que é da Justiça”, ter permitido, com a sua inação política, sermos conduzidos a esta situação, previsível depois das múltiplas ocorrências semelhantes durante o seu mandato, apesar de Rui Rio lhe ter oferecido uma reforma séria e democrática do “Estatuto do Ministério Público”.
A Assembleia da República tem igualmente silenciado este assunto, o que é duplamente grave, pois esse silêncio significa que ela não passa de uma caixa-de-ressonância do Governo que teoricamente suporta, e que os deputados, individualmente considerados, não passam de funcionários dos partidos.
Finalmente, não se pode deixar de lamentar que os juristas das Faculdades de Direito não se insurjam contra o modo como vem sendo atuada a lei orgânica do Ministério Público, bem como a interpretação/aplicação que dela tem sido feita pelo Ministério Público relativamente a certo tipo de processos, assim como as normas aplicáveis do Código de Processo Penal.
Não, não podemos aceitar viver num país cujo Governo esteja à mercê do Ministério Público! Não, não podemos!"