"Sérgio Godinho sabia do que falava, do ponto de vista histórico-filosófico, quando escreveu a canção inspirado por uma revolução, numa altura em que mais pessoas viam melhor as conexões: «A paz, o pão, habitação / Saúde, educação / Só há liberdade a sério quando houver / Liberdade de mudar e decidir / Quando pertencer ao povo o que o povo produzir».
A ideologia da IL, associando menos Estado a mais liberdade, é duplamente ofuscadora. Em primeiro lugar, os liberais assumem querer um vago «Estado forte», até porque no fundo sabem que não se trata de mais ou de menos Estado, mas de um certo tipo de Estado. Criar mercados para quase tudo, expurgar o capitalismo dos seus elementos sociais-democráticos, dá sempre imenso trabalho político. Na história da economia política, está estabelecida a ligação entre os processos de neoliberalização e a emergência de um Estado penal musculado e de um Estado bombeiro para acudir às crises cada vez mais frequentes.
O Chega tem a virtude de ser mais claro do que a IL: repressão para institucionalizar uma certa forma de capitalismo e «guerras culturais» para distrair e alienar. Daí que talvez tenha mais campo para progredir. Juntos desempenham a função de anular a esquerda."
«... urge ocupar a liberdade. Já é óbvio que, nas eleições legislativas de 30 de Janeiro, o voto no «arco da governação» constituirá a única opção amplamente apresentada como responsável, ainda que tenha sido esse «arco da governação» a criar condições restritivas de governabilidade que esgotam qualquer solução democrática para lá dos seus horizontes gestionários e estultos.Se os combates pela igualdade são o passado e o presente dessas esquerdas, importa levar os combates pela liberdade aos espaços monopolizados por quem se diz guarda e vigilante da liberdade, começando pela disputa da hegemonia que o liberalismo ainda mantém sobre os sentidos e possibilidades da liberdade. Se o 25 de Abril foi, é e será o Dia da Liberdade, a pressão pandémica convida-nos a contestar o liberalismo, a invadir os seus domínios protegidos, a expor e erodir as suas hierarquias implícitas. Com ferramentas cristalizadas nos combates intelectuais da Guerra Fria, o liberalismo, incluindo as variantes portuguesas, não se coíbe de tecer considerações moralistas sobre a falsa equivalência entre as esquerdas inconformadas e a extrema-direita. Como bons sacerdotes seculares, os visionários do liberalismo recorrem constantemente à cartilha aprendida nos seus espaços protegidos...
O poder do fundamentalismo de mercado continua a ser notório: o mercado resolverá o problema; o mercado determinará a melhor solução; a concorrência é o mecanismo adequado para solucionar os problemas históricos do país. A reivindicação de uma existência digna, assente na fruição de um direito fundamental como a soberania sobre o tempo de que dispomos — um direito ainda mais precioso no mundo pandémico —, é vista como dislate filosófico ou loucura política. Levar o combate pela liberdade ao trono dos seus autoproclamados guardiães e vigilantes significa exigir a sua prestação de contas.
Afinal, de que liberdade falam? Do direito à contratualização de qualquer relação humana? Do direito à venda do tempo em condições coercivas? A reivindicação do direito ao tempo e da soberania sobre a finitude, em tempos pandémicos, é ainda mais uma orientação à esquerda. É por essa razão que as lutas pela habitação digna, pela mobilidade, pela justiça climática ou pela igualdade interseccional são hoje tão relevantes como a dignidade salarial. Em todos estes domínios, fruir do tempo de que precisamos para aquilo que quisermos significa contestar conformismos lógicos e rotinas opressivas. Temos direito à fruição do nosso tempo em liberdade. Também por isso, o problema que se colocará nas eleições do próximo dia 30 não será o da orientação. As esquerdas inconformadas mantêm, na intensa variedade dos seus projectos emancipatórios, visões plurais das orientações que as norteiam. A imaginação e a tenacidade não são recursos escassos e as esquerdas inconformadas não precisam de promover concursos internacionais ou competições com prémios chorudos para imaginar tenazmente. O problema será, em vez disso, o da clareza.
Não é claro, por agora, para muitos, que as lutas pela gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou do ensino superior sejam lutas pela liberdade. Mas são. Levar o combate pela liberdade às zonas sacrificiais e às pessoas sacrificadas pelo ultraliberalismo, forçando os cães de guarda de uma liberdade mirrada a defender-se, implica uma clarificação. O apego colectivo que continuamos a ter aos grandes projectos de libertação civilizacional, como o SNS ou a Segurança Social — malgrado a sua incompletude, os seus defeitos, as suas ineficiências — mostram como esses projectos só podem ser vistos como armas de servidão por blocos históricos concentrados em impedir que a liberdade seja um bem verdadeiramente comum. A estratégia é evidente e eficaz: continuam (e continuarão) a insistir na tese de que as suas ideias só não produzem uma utopia porque não se levam à sua conclusão final. Essa é a essência do fundamentalismo de mercado. No caminho para 30 de Janeiro, voltaremos a ouvir comparações pífias com a Irlanda ou com as repúblicas bálticas. Voltaremos a ouvir falar das «reformas» do «sistema» nacional de saúde. Ouviremos falar de liberdade sem que nos expliquem como se viverá essa liberdade determinada pelo tamanho da carteira accionista. É a especialidade do ultraliberalismo tardio. Compete às esquerdas inconformadas disputar esse espaço. A recusa foi um começo.»
Luís Bernardo, Ocupar a liberdade e ganhar o tempo, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Dezembro de 2021.