Tarda nada e estamos nos dias de Setembro com as tardes a adormecerem frescas.
Às 20 horas já a escuridão cobre as janelas.
A chegada de Setembro, além de trazer tardes que já adormecem frescas, inícia as longas e escuras noites em que é possível viajar pelas memórias da infância, o tempo em que ainda não é demasiado tarde e temos disponibilidade para o entusiasmo do que é importante - o futuro e tudo o que isso implica.
E todos sabemos sabemos que onde há futuro há morte.
O passado é uma herança de memórias, algumas apenas calcadas e ainda por enterrar. Como esta que a imagem mostra de fome. A foto é de 1943. Mostra a realidade da Cova e Gala desse tempo. Na altura, vivia-se em plena II Grande Guerra. Aqui, neste cantinho à beira-mar plantado, imperava o desemprego, o medo, o racionamento e a miséria. Éramos gente cabisbaixa, vencida e resignada, entregue a um destino sem sentido e ferida na sua dignidade. Valia o altruísmo de alguns a quem doía a visão da fome e da miséria. Estávamos em 1943 em plena Cova num local que alguns, porventura, ainda reconhecerão. Eram os tempos dos invernos da fome - duros e prolongados.
Os homens iam para a pesca do bacalhau e as mulheres ficavam a governar a casa.
O dinheiro faltava. Recorrria-se ao "livro" nas mercerias da Aldeia.
Mas, havia invernos ainda mais duros e mais prolongados e ainda com mais fome.
E, aí, restava o último recurso: o "Senhor dos Aflitos".
O "Senhor dos Aflitos", como contei um dia destes, era a "casa dos penhores" que funcionava na Caixa Geral de Depósitos.
Esta foto, recorda tempos duros e difíceis, mas também é um testemunho visual, que retrata a paisagem humana e a vida da população de uma Aldeia piscatória no Portugal profundo, que perdurou até às décadas sessenta e primeira metade da de setenta do século passado.
A emigração em massa dos jovens, nas décadas de cinquenta e sessenta, e a Guerra Colonial, que sacrificou a vida dos jovens da minha geração, abriu as portas para a Revolução de Abril, que devolveu a liberdade aos portugueses e permitiu uma nova era de progresso económico e social.
O acto libertador dos capitães de Abril, laboriosamente preparado - fruto e no quadro de uma resistência que nunca desistiu -, foi o minuto histórico do tempo da euforia de respirar Liberdade, associada à melhoria das condições de vida. Logo depois - nas horas do relógio da História que se seguiram - foi o tempo de confrontar a situação de um país atrasado economicamente.
Em inevitável mudança.
"Um País no final do III Plano de Fomento (1968-73), que definira coisas que se impunham, como a extinção dos distritos e a criação de regiões, no arranque de um IV Plano de Fomento (1974-79) que a nada poderia dar continuidade porque nada pressupunha de mudança, no rescaldo de uma reforma industrial que derrapava, em arranjos para que a diluição da EFTA com a adesão do Reino Unido e outros à CEE, nos arrastara com a assinatura de um acordo comercial com a mesma CEE, em 1972.
Assim se entreabrira, tímida e forçadamente, a autárcica economia portuguesa dominada por um reduzido número de grupos monopolistas, num Estado (que os criara, no algodão em rama de todas as protecções), num Estado por esses grupos domesticado, orçamentalmente garrotado por uma guerra colonial que se prolongava até à derrota final e que, de certo modo – perverso… –, internacionalizara a nossa economia e punha Portugal como um dos centros de um mundo em ebulição (crise monetária, crise do petróleo, importância crescente, no contexto internacional, do “mundo socialista”, de países ex-colónias, de não-alinhados).
Nesses anos de encruzilhada, o Portugal nascido teve, ainda, de confrontar, objectivamente, uma fortíssima pressão demográfica – fecho da “válvula de escape” da emigração, desmobilização militar e retorno das colónias, desemprego por ausência de investimento – que coincidiu e se juntou à fuga de capitais, ao abandono de empresas, à sabotagem, ao boicote até ao terrorismo, na ilustração da luta de classes - em que uma trincheira procura, de todas as formas, impedir a alteração da correlação de forças.
De 18 de Julho de 1974, posse do II Governo Provisório, a 6 de Setembro de 1975, data da demissão do V Governo Provisório, são os “governos Vasco Gonçalves”. Menos de 14 meses, 415 dias (mais dia, menos dia…), quantos bastaram para que, enquanto se testava, dia a dia, hora a hora, a mudança na correlação de forças, se mudasse o País que éramos.
Como resumidamente inventariou o professor Teixeira Ribeiro:
“…desde o congelamento das rendas urbanas e a nacionalização dos bancos emissores, a que procedeu o II Governo, e a lei de arrendamento rural, obra do III, até às nacionalizações dos sectores-chave e das empresas monopolistas, decretadas quase todas pelo IV Governo, e algumas pelo V, à reforma agrária do IV Governo, e à Lei do controlo operário, aprovado pelo V, mas que não chegou a ser promulgada…”.
E a economia portuguesa resistiu. Com governos – os governos Vasco Gonçalves – a apoiar o trabalho e os trabalhadores. E a resistir a todo o tipo de ataques. Dos interesses beliscados, fossem eles económicos, de grupos nacionais ou internacionais, fossem eles de partidos com uma concepção de democracia que fica abandonada à porta das empresas e tem a acumulação do capital como motor da economia, como se não fosse o trabalho o único criador de valor.
O facto é que, como de norma a quem sucede e se quer escudar na “pesada herança” que teve, a avaliação/auditoria pedida no final de 75 e realizada por uma equipa de técnicos no âmbito da OCDE – onde se integrava o jovem Paul Krugman, hoje prémio Nobel e “guru” de tantos economistas –, considerou estar a economia portuguesa de surpreendente saúde."
Surpreendente?
Talvez… Para quem tem concepções de economia que assentam, não no trabalho, mas na exploração dos trabalhadores.
E veio o futuro, hoje presente.
E todos sabemos, que onde há futuro há morte.
E foi morrendo muita coisa. E continua a morrer muita coisa que cheira a Abril.
E Portugal está a definhar. E com o definhamento de Portugal, as nossas vidas vão no mesmo sentido.