quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Mário Soares foi um político humano: não teve sempre razão e enganou-se muitas vezes

Hoje, pelas 18h00, no Centro de Artes e Espectáculos, vai decorrer a apresentação pública do programa comemorativo do centenário do nascimento de Mário Soares.
Na oportunidade, decorrerá também a inauguração da exposição de fotografia de Alfredo Cunha «Mário Soares- 100 anos 100 Fotografias- Democracia».
Mário Soares foi uma grande vedeta política. No País e na Figueira.
Encheu a Fonte Luminosa em Lisboa. Mas, mais difícil ainda, também encheu a Fonte Luminosa na Figueira.
Mário Soares, consta,  continua a ser  uma referência. Foi  o homem a quem Portugal deve não ter sido arrastado para o bloco comunista em 1975, tendo como expoente mais visível a manifestação da Fonte Luminosa, em Lisboa, no chamado Verão Quente.
Na altura, Portugal dirimiu. Portugal sentiu. Portugal decidiu.
Entretanto, Portugal deprimiu. Portugal ressacou. Resultado: Portugal recuou.

"O tempo de Mário Soares", um texto Eduardo Lourenço, publicado em 18 de Janeiro de 2006, no Jornal Público, lido nos dias de hoje, "é os olhos da história".
Foi publicado no tempo do fim de mandato do Presidente Jorge Sampaio e da realização das sétimas eleições presidenciais portuguesas, após o 25 de Abril de 1974, que tiveram lugar a 22 de Janeiro de 2006.
Como sabemos os resultados foram estes: Cavaco Silva, com 2.758.737 votos, ganhou com uma percentagem de 50,64%.  Manuel Alegre, com 1.127.472 votos e uma percentagem de 20.70%, ficou em segundo lugar. Mário Soares, com 781.513 votos e uma percentagem de 14.35%, ficou em terceiro lugar. De registar ainda os 467.360 votos e a percentagem de 8,28% alcançada por  Jerónimo de Sousa nesse acto eleitoral. 
Continuemos em 2006. Vamos ao texto de Eduardo Lourenço.
«A campanha eleitoral não tem sido exactamente aquele torneio político exemplar que alguns idealistas impenitentes sonharam. Faltou-lhe paixão e sobraram escusadas flechas em forma de boomerang. [...] Trazer para esta sociedade, mais do que nunca sociedade de espectáculo, o eco da antiga paixão portuguesa, quer a recalcada do antigo regime, quer a exaltada e exaltante das duas décadas após Abril, era uma aposta arriscada, para muitos perdida e, em todo o caso, objectivamente quixotesca. Filho desses dois tempos, de que foi actor político precoce e, depois, personagem histórico, Mário Soares ousou trazer de novo para uma arena pública, já longe desses tempos turbulentos, essa antiga paixão política, sem querer saber se estaria ou não fora de estação. Passada a surpresa, esta audácia quase juvenil do antigo Presidente da República foi recebida com cepticismo por muitos, com sarcasmo por outros e, sobretudo, como uma ocasião inesperada para ajustar contas antigas e menos antigas com o homem que, melhor do que ninguém, de entre os activos, se identificou e é identificado com a Revolução de Abril e, em particular, com o tipo de democracia que ela instaurou em Portugal. [...] O mundo é que não é exactamente o mesmo mundo onde essa aventura pessoal e transpessoal foi possível. E esse mundo tinha de mudar, não o homem Mário Soares, mas a imagem dele no espelho alheio. O mesmo homem que, em tempos, passou entre nós como “o amigo americano” quando isso significava que o destino da nossa frágil democracia implicava alinhamento com a primeira das democracias ocidentais, aparece, hoje, aos olhos dos que têm interesse em cultivar essa vinha, como “antiamericano”, o que é, naturalmente, ainda mais simplista do que a antiga etiqueta. A única verdade desta valsa ideológico-mediática é clara: o antigo mundo que foi, durante décadas, o do horizonte da luta política de Mário Soares, funciona em termos de repoussoir — e Mário Soares, mais fiel aos seus ideais de sempre do que se diz, aparece, em fim de percurso, mais à “esquerda” do que nunca o foi. [...] Este tempo de Mário Soares não é apenas o tempo de Mário Soares. É o de várias gerações que, como ele, num mundo então histórica, ideológica e culturalmente dividido entre “direita” e “esquerda”, não apenas no Ocidente mas à escala planetária, escolheu um campo, numa época em que não escolher era ficar fora, não apenas do combate político, mas do combate da vida. É inócuo e só na aparência, prova de imaginária lucidez, pensar que esse comportamento releva de uma versão simplista e maniqueísta do mundo. Essa era a textura do mundo e da história que nos coube viver e só quem pretende viver fora deles se imagina sobrevoá-los como os anjos. É uma bela aposta a de Mário Soares, perdida ou ganha. Com a sua carga romanesca e a sua trama paradoxal. Mário Soares não é — nem a título histórico, nem ideológico — toda a esquerda portuguesa, mas nunca foi mais representativo dela, da sua utopia e das suas inevitáveis miragens, do que hoje, quando, aos oitenta anos, se apresenta como alguém, dentro dessa escolha, susceptível de incarnar ainda, melhor do que ninguém, essa velha aposta que entre nós nasceu com Antero e teve em António Sérgio, entre outros, as suas referências culturais, infelizmente mais vividas com sugestões poéticas do que propriamente políticas. Dizem-me que os dados há muito estão lançados e mesmo que os jogos estão feitos. Não o duvido. [...] Os seus adversários neste combate inglório e soberbo foram sempre outros. Não só os que se lembram do seu militantismo juvenil, como os que não esquecem a sua conversão definitiva ao socialismo democrático, mas, sobretudo, os que nunca lhe perdoaram o ter lutado pela democracia em Portugal, antes e depois de Abril. É isso que a verdadeira direita não esquece. É muito mais gente do que se supõe. É a mesma que põe na sua conta, como uma mancha indelével, a absurda culpa de ter “perdido” uma África que ninguém “perdeu” senão ela. [...] A esquerda não o traiu, nem ele se traiu nela. O drama é que essa esquerda de que pela última vez se faz paladino é, ao mesmo tempo, uma realidade — embora ideologicamente recente — e uma quimera. O problema da esquerda nunca foi a direita [...] mas a esquerda mesmo como pura transparência da história. A esquerda, sendo em intenção mais virtuosa, não é menos opaca, no seu angelismo imaginário, que a mais obtusa direita. Sobretudo quando não se dá conta disso. Em alegoria caseira, estas nossas eleições tão consensualmente democráticas, ilustraram com suavidade à portuguesa esta fatalidade. O combate no interior da nossa suicidária esquerda foi, à sua maneira incruenta, uma espécie de Alfarrobeira política. Talvez algum cronista, no futuro se inspire nela para nosso ensino inútil. Ou um poeta. Mas não terá Mário Soares.»

Voltando a 2023. Basta ver televisão para perceber que a matriz da democracia, que é a liberdade, é algo sistematicamente "esquecido": no panorama da comunicação social portuguesa e no comentário político não há pluralismo.
Esta constatação simples, facilmente visível por qualquer um de nós, se estiver minimamente atento ao que o rodeia, é um exemplo de como corre perigo a liberdade e a democracia.
Para quem goste ou não do político, foi isto que Mário Soares deixou como legado: a capacidade de saber quando a liberdade corre perigo. Ninguém como ele identificou os responsáveis, denunciando-os na praça pública, alguns até do seu partido. Enquanto a vida lhe deu forças, nunca pactuou com os inimigos da liberdade. 
A democracia portuguesa vive tempos difíceis. Daí, em 2023, a importância de recordar Mário Soares e, sobretudo "a herança que deixou"
Esta "nova" (velha) direita portuguesa, que se auto-considera intelectual e liberal, pratica um  liberalismo, que continua a "não enjeitar a teta do orçamento".
Sempre foi assim: quer antes quer depois do 25 de Abril .
Desta nova direita, composta maioritariamente por políticos nascidos depois do 25 de Abril de 1974, esperava-se mais: que tivesse novas ideias e dispensasse o obscurantismo como arma política. 
Mas, citando Vasco Pulido Valente: "a referência ideológica da direita portuguesa continua a ser Salazar, o que lhe confere um inequívoco certificado de origem."
Nas elites desta "nova" (velha) direita, quase 50 anos depois da censura ter terminado numa manhã de Abril, o obscurantismo continua a fazer o seu caminho. 
Para esta "nova" (velha) direita, "Mário Soares nunca será um homem de coragem e muito menos um grande político."
Para eles o que o moveu "foi a vaidade e a soberba."
Estamos num País livre, onde se pode dizer tudo e mais alguma coisa. Basta passar os olhos pelas redes sociais.
Mas que moral tem esta rapaziada? Sabem o que foi a luta pela Liberdade e pela dignidade que levou muitos a ter passar pela prisão política?
Esta "nova" (velha) direita é perigosa.
Podia não ter respeito por Mário Soares. Mas, há mínimos que os manipuladores da história deveriam respeitar: nomeadamente a verdade histórica.
Tentar utilizar a ignorância arrogante como uma mais-valia eleitoral é insurportável.

Mário Soares não é um político da minha especial simpatia.
Porém, foi um político humano: não teve sempre razão e enganou-se muitas vezes.
Espero que as comemorações que hoje se iniciam na Figueira contribuam para clarificar isso.
Para quem está atento e vive em 2023 num País chamado Portugal, isso é importante: "quem o diz é a História"

Nota de rodapé.
Nos bastidores da política figueirense, elementos ligados ao PS/Figueira, acusam-me de várais coisas. Entre elas, de não gostar do PS. 
E, se calhar, têm razão. 
Previno, desde já, que a explicação é longa. 
Quem tiver curiosidade, continue. Basta clicar aqui.
Para mim será um gosto visitarem esta reflexão que publiquei em 13 de Junho do corrente ano.

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