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segunda-feira, 12 de agosto de 2024

UM RAPAZ DE VISEU, EM LOS ANGELES (E NO SEU PRÓPRIO PAÍS…)


FOTO:
DAQUI

TEXTO: ALFREDO PINHEIRO MARQUES, DATADO DE 12 DE AGOSTO DE 2024

«12.08.2024, completaram-se quarenta (40) anos desde 12.08.1984… o dia em que o Homem da Maratona — o rapaz de Viseu… — conquistou para Portugal a primeira Medalha de Ouro dos Jogos Olímpicos. E conquistou-a nem mais nem menos do que na prova da maratona… A mais importante, mais simbólica e mais difícil de todas, na versão moderna desses Jogos que os Gregos criaram na Antiguidade e que a finura francesa renovou e recomeçou a partir do século XIX, e que, por isso, depois, a partir do século XX, se tornou o principal palco mundial, e ainda hoje (nesta semana que agora passou) o continua ser.

Carlos Lopes, o rapaz de Vildemoinhos (Viseu), é o homem por quem o autor destas linhas tem, e sempre teve, a maior admiração e o maior respeito, por entre todos os seus concidadãos e contemporâneos portugueses da segunda metade do século XX e dos inícios do século XXI. E eu sempre soube que, um dia, mais cedo ou mais tarde, iria escrever sobre ele, e dizer publicamente isso mesmo. E esse dia chegou. É hoje, quarenta anos depois.

Quando eu próprio estive em Los Angeles, em 1992 — em Westwood, na UCLA, ali ao lado de Beverly Hills, de Rodeo Drive, e de Hollywood… —, foi a sombra desse rapaz de Vildemoinhos que eu lá então pressenti, e procurei… Quando percebi que, sendo eu também vindo de Viseu, tinha chegado lá… E lá estava, eu, ao lado da "Meca" dos sonhos e das ilusões do mundo moderno inteiro… Do verdadeiro centro do mundo, da "Sociedade do Espectáculo".

Essa sombra foi a coisa mais verdadeira que lá encontrei (talvez só acompanhada pelo bronze de um busto de Aldous Huxley, na biblioteca da UCLA, de que também ia à procura?).

Pensei em Séneca. "Não há nada pior para a formação de um bom carácter do que perder tempo a assistir a espectáculos"… Estamos sós. Nascemos sós. Devemos fazer a nossa própria corrida (mas, contra nós próprios…). Sós. Para nos testarmos a nós próprios. Para sabermos até onde poderemos chegar. É esse o espírito ("that's the spirit…"). Olímpico.

Devemos ser nós a escolher a direcção e a disciplina, seja ela qual for. Seja ela mais ou menos difícil (mas as mais difíceis são as melhores). Ou aceitar a que o acaso do destino nos propiciou, mas… tornando-a nossa, por vontade ("dúplice dono de dever e de ser"… "calmo sob mudos céus"…). Tornarmo-nos naquilo que já somos, segundo o conselho nietzscheano.

E… sobretudo, depois, devemos correr… Correr por correr. Como se fosse sem ser por nada (nós sabemos porquê…). Por uma coroa de ramos de oliveira, ou qualquer outra coisa assim, que tivermos escolhido. Devemos ser olímpicos. Na nossa vontade, pelo que queremos, e no nosso desprezo, pelo que desprezamos.

Carlos Lopes, o homem que se fez a si próprio e que, em 1984, neste mundo (no centro deste mundo, tal como ele já então era… i.e. em LA.…), veio a ter o maior dos triunfos planetários possíveis, tinha, antes disso — 37 anos antes disso — nascido pobre.

Em Portugal, país pobre (tal como sempre foi, e continuou a ser).

Quando Carlos Lopes tinha onze anos de idade, foi servente de pedreiro. Para ajudar a sustentar a família (sendo o mais velho de oito irmãos). Ele até teria querido, então, ser jogador de futebol, no clube da sua terra, o Lusitano de Vildemoinhos. Mas foi recusado, e veio antes a fazer parte de uma secção de atletismo que ele próprio lá criou, juntamente com os seus amigos de então, nesse clube da sua aldeia, nos arredores de Viseu. Eles começaram a correr, uns atrás dos outros, num pinhal na Beira Alta, a ver quem era o que chegava primeiro. Foi assim que se criou um futuro campeão de corta-mato, e de estrada, e de longa distância.

A primeira competição oficial em que participou foi a corrida de São Silvestre, em Viseu, em 1965. À medida que cresceu, corrreu todo o circuito das competições de atletismo nos circuitos locais e regionais da Beira Alta, à volta de Viseu. Os resultados eram invulgares e, por isso, depois, teve a oportunidade de ir para Lisboa, em 1967, e aí correr por um clube da capital, o Sporting, e ser treinado pelo melhor treinador da época, Mário Moniz Pereira. E ele era sportinguista… quis ir… Recusou a Académica de Coimbra e o Benfica de Lisboa. Agarrou essa oportunidade de ser treinado pelo melhor treinador português, como já tinha agarrado as anteriores, ao mesmo tempo que, sempre (para poder sobreviver, enquanto corria…) trabalhou como empregado de mercearia, como serralheiro, como contínuo de um jornal e de um banco.

O que, portanto, quer dizer que os dois portugueses que depois vieram a ganhar prémios internacionais verdadeiramente importantes, de primeiro nível mundial — Carlos Lopes a Medalha de Ouro Olímpica em 1984, e José Saramago o Prémio Nobel da Literatura em 1998 —, haviam sido, antes disso, ambos, serralheiros… ou aprendizes de serralheiros…

Tão diferentes, mas, nisso, unidos: pobres, num país de pobres.

Em 1970 já brilhava em Portugal inteiro, e não somente em Viseu. E em 1976 já estava em circuitos internacionais, e ganhou o Campeonato do Mundo de "cross-country" (corta-mato, sem ser nos pinhais de Vildemoinhos). Depois, nos Jogos Olímpicos, fez o cursus honorum como deve ser feito, longamente, começando desde o princípio… Em 1972, em Munique, para aprender… e em 1976, em Montréal (já sabendo), para ganhar… E só não ganhou, logo então, o ouro da corrida de 10.000 metros (teve que se contentar, por enquanto, com a Medalha de Prata) porque, no fim, à última hora, depois de dominar a corrida toda, esse ouro de Montréal foi para o seu grande rival de então, o finlandês Lasse Viren, que era polícia (nessa época, todos eram então ainda amadores, e não eram mercenários comercialmente subsidiados…). O rival que, para além de ter uma grande capacidade atlética, beneficiava também de práticas tecnológicas e de estratégias de treino então ainda muito pouco divulgadas (como a de fazer transfusões sanguíneas), as quais seguramente não estavam ao alcance de um atleta português.

Foi uma desilusão. Mas, em todo o caso, nesse momento, com essa Medalha de Prata dos 10.000 metros, foi assim ganha para Portugal, pela primeira vez, desde sempre, uma medalha olímpica em atletismo. Foi mostrado que era possível. Por esse rapaz de Viseu.

E, mais importante ainda, ele aprendeu, para o futuro ("fui enganado por um polícia"…).

Continuou. Em Julho de 1984, enquanto se preparava, em Portugal, para os novos Jogos Olímpicos, que iam ter lugar nos Estados Unidos no mês seguinte, foi atropelado… Atropelado enquanto treinava, correndo, numa rodovia, no meio do trânsito desordenado de Lisboa (e foi atropelado pelo carro do candidato a presidente de um clube lisboeta, o clube em que ele próprio treinava, e em frente ao estádio do outro clube lisboeta…).

Quando se levantou do chão, e deu conta de que até ainda conseguia correr, diz que percebeu, logo então, que ainda viria a conseguir ir para a América, competir, e ganhar.

Recuperou, foi, e ganhou. Quinze dias depois desse atropelamento, em 12 de Agosto de 1984, venceu, destacadíssimo, a prova mais importante e mais emblemática de todas as do atletismo mundial, a maratona, nos Jogos Olímpicos de 1984 em Los Angeles.

Foi, portanto, o primeiro português a ser medalhado com Ouro, nos Jogos Olímpicos.

Na Maratona.

Tinha andado ao longo dos últimos dois anos e meio a treinar especialmente só para isso — só para a maratona —, e a participar em provas dessas (sem nunca ganhar nenhuma delas… e, às vezes, até desistindo…), só para ver e vigiar os potenciais adversários, sem dar nas vistas.

Tinha sobre eles a enorme vantagem de (embora deliberadamente não dando nas vistas nessa especialidade de maratona) ser um dos melhores, ou o melhor, de todos os atletas nas especialidades de 10.000 e 5.000 metros; e portanto poderia vir assim a surpreender todos os adversários futuros, com uma aceleração e uma ponta final arrasadora nos últimos cinco quilómetros, se lá chegasse, quando um dia viesse a correr a sério, para ganhar, uma prova de 42 quilómetros e 195 metros, como é a maratona… E foi isso o que veio a acontecer.

Em Los Angeles correu os dois últimos quilómetros saboreando isso; e quando por fim entrou, sozinho, e destacadíssimo, naquele Coliseu californiano, saudou o público — de 90.000 pessoas… — com tanta ou mais efusividade do que aquela com que esse público, surpreendido, e em delírio, o estava a saudar a ele… E, mesmo depois de já ter passado a meta, continuou a correr, para dar mais uma volta ao estádio… saudando…! Viseu em LA…

O seu tempo de então, de 1984, viria a continuar sem ser batido por ninguém durante VINTE E QUATRO (24) ANOS. Foi, então, de 2 horas, 9 minutos e 21 segundos… Um recorde que durou até aos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008. E, logo depois, no ano seguinte, em 1985, para além de já ter batido o recorde olímpico, Carlos Lopes bateu também o recorde mundial absoluto, em Roterdão, com 2 horas, 7 minutos e 12 segundos …

Ganhou a maratona, em LA, quando tinha mais idade do que qualquer outro vencedor: trinta e sete (37) anos de idade.

Foi o último vencedor europeu nas provas todas de longa distância, antes do domínio avassalador desse tipo de provas pelos atletas extra-europeus, etíopes, quenianos, etc..

As suas duas medalhas olímpicas conseguidas para Portugal, uma de Ouro e outra de Prata, continuaram a ser o melhor resultado olímpico obtido por um só homem, para este país, durante os quarenta (40) anos seguintes. Até às Olimpíadas que agora estão em curso em 2024 em Paris… 

E Carlos Lopes continuou a ser o mesmo homem que sempre havia querido ser, e nunca se deixou instrumentalizar ou manipular para qualquer fim, político, partidário ou comercial, ao serviço seja do que for ou de quem for. Na sua própria terra, em Viseu, e no país. Olímpico.

Ele fala por si mesmo. Carlos Lopes é um homem inteligente, e corajoso, e que bem sabe — e bem afirma, claramente (em Viseu, e em Lisboa, e no país inteiro) —, que foi a democratização, em Portugal, no pós 25 de Abril de 1974, que veio a permitir que a sua carreira tenha sido feita como foi, e tenha tido os êxitos que teve. Para além, claro, da razão e força principal do seu destino e dos seus êxitos, desde Viseu a Los Angeles: a SUA VONTADE… A sua capacidade de querer, e de conseguir. E de saber o que deveria querer.

Ele sabe bem, e aponta, as razões por que a prática desportiva e a participação olímpica em Portugal não têm o desenvolvimento que deveriam ter se Portugal e as suas instituições escolares fossem capazes de se estruturar para isso, em vez de acumular retóricas e mentiras.

Esse homem fala por si.

Nunca verdadeiramente em Portugal lhe deram o reconhecimento e a admiração que há muito merecia, na dimensão que merecia. Em vez disso, foram-lhe dando, sucessivamente, um a um, os degraus todos — sucessivos… — de uma condecoração estatal que o Doutor Oliveira Salazar antes havia inventado, no seu tempo, em 1960, com o nome do mítico "Infante Dom Henrique", dos míticos "Descobrimentos"… O "Infante", cuja mentira histórica, monumental, o Estado português nunca teve coragem de deixar de oficiar, nem antes nem depois de Abril de 1974, embora toda a gente possa facilmente perceber que é um mito totalmente falso…

Foram-lhos dando todos os quatro sucessivos graus "henriquinos"… desde "Cavaleiro" até "Grã-Cruz", em 1977, 1984, 1984, 1985… E não lhe deram mais quase nada…

12 de Agosto de 2024, completam-se quarenta (40) anos desde o dia da entrada triunfal do homem de Vildemoinhos (Viseu) no Estádio Olímpico em Los Angeles.

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Não posso dizer que o conheça pessoalmente. Julgo que só eventualmente teremos falado, presencialmente, uma vez (há mais de cinquenta anos…), quando eu, muito novo, nessa época, por volta de 1972 (?), estive na organização de uma prova de "atletismo", uma corrida local, no âmbito das festas anuais da minha aldeia, na Beira Alta, e tivemos a honra da participação dele entre os corredores convidados, de Viseu, e que corresponderam ao convite. Devo ter apreciado isso, então, em alguma medida. Mas não percebi que essa breve conversa, numa rotunda antes de se chegar à minha aldeia, iria ser uma das grandes honras da minha vida.

Pela minha parte — que, ao longo da vida, depois, iria fazer um pouco de tudo, mas mal (sobretudo actividades desportivas e afins como corrida, futebol juvenil, tiro com arco, aikido e surf) — até estive em Olímpia, quando fui à Grécia no verão de 1979, mas não fiz lá nenhum desporto no estádio antigo. Não era esse o meu destino. Fiz sim, lá, no anfiteatro refeito, aquilo que toda a gente já então fazia (e os turistas ainda hoje certamente continuam a fazer): amarrotei um papelzinho… para se poder comprovar que a acústica dele é tão boa que até na última fila se consegue ouvir esse papelzinho a ser amarrotado…

Veio a ser essa, de resto, a principal e verdadeira disciplina olímpica a que eu me iria dedicar (mas com o verdadeiro espírito, o olímpico…) ao longo dos cinquenta anos seguintes: amarrotar papelzinhos (depois de neles ter escrito, antes, com uma caneta, as coisas que neles queria escrever…). E ainda hoje continuo a fazê-lo (e vou continuar…). Ainda bem que o sei fazer bem (e com o bom espírito), para poder agora estar hoje aqui a escrever este texto, sobre esse homem. Pois, na verdade, por quem eu tenho, desde há muito, de facto, a maior das admirações e o maior dos respeitos, no meu país, é por Carlos Lopes, de Vildemoinhos (Viseu).

Pergunto a mim próprio como é que esse homem se deverá sentir hoje, quarenta anos depois, em 12.08.2024, ao ver que Portugal continua como continua — igual, ou até, em alguns aspectos, pior do que sempre esteve…? —, com o Futebol (e os seus negócios, cada vez mais milionários e escuros) a dominar, esmagadoramente, na sociedade, na economia e na opinião pública… e todas as outras disciplinas desportivas a serem por isso desprezadas e esquecidas, ao longo de cada ano inteiro, durante cada quadriénio…

E, depois, nos telejornais, e nos jornais, e nos círculos decisores, toda a gente a esconder e a silenciar aquilo que toda a gente sabe: que, exceptuados os do Futebol, os resultados desportivos portugueses — na sua imensa maioria (salvo algumas pequenas excepções, que servem para confirmar a regra) — são infelizes, e simplesmente confrangedores, e pobríssimos, por falta de apoios para os atletas que, apesar de tudo, heroicamente, ainda vão insistindo em tentar praticar quaisquer outras disciplinas desportivas para além do Futebol.

Os jornalistas, e os jornaleiros, e os comentadores, e os políticos, depois, lá repetem as retóricas e as lamentações e as promessas do costume: gabam quem, apesar de tudo, tem a "resiliência" de continuar, e opinam que o que são precisas são soluções mais "robustas", para se ultrapassarem os "constrangimentos", etc., etc., etc., blá, blá, blá, blá, bá, blá, blá, bá, blá… Para que tudo continue igual, com as escolas sem desportos a sério, e as televisões (que são as verdadeiras "escolas", neste mundo que aí está…) sempre cheias de mais e mais Futebol…

O mensageiro que em 490 a.C. veio trazer a notícia da batalha de Maratona a Atenas morreu depois de correr esses 42 quilómetros (e era, apesar de tudo, uma boa notícia). Mas o nosso Carlos Lopes, de Vildemoinhos, Viseu — que em 1984 levou Portugal ao mundo inteiro, a sério, ganhando uma maratona olímpica, a sério, e desde então nos diz que devíamos desenvolver o desporto, a sério, no nosso próprio país —, está vivo, e fala por si próprio, a sério. Deveria ser ouvido (quando nos dá a má notícia do estado do desporto, a sério, neste país…). E deveria ser homenageado, a sério, como merece, na dimensão que merece. O que, de facto, até hoje, ainda não aconteceu. É possível alguma coisa a sério, neste país…?

E o desporto português continua a ser confrangedor. Portugal é o país que, desde 2004, se cobriu a si próprio de ridículo e de vergonha — um ridículo e uma vergonha que vão ficar para sempre, na sua História… — quando, nesse ano de 2004 (gastando nisso rios de dinheiros dos impostos dos seus cidadãos e de dinheiros que a Europa lhe dava para sair do seu subdesenvolvimento…?), construiu de raiz dez (10) estádios de futebol (!)… para albergar um campeonato de futebol… e chamou a isso "um desígnio nacional" [sic] (!)…

E fez isso no ano a seguir ao ano de 2003… em que o país havia ardido mais do que nunca (!), nos seus anuais incêndios florestais (até a NASA, a partir do espaço, e de lá de Pasadena, em Los Angeles… fotografou especialmente essa desgraça).

Portugal, em 2004 — vinte anos depois de 1984… —, na sua política e na sua sociedade e no seu desporto, foi uma anedota, e uma tragédia…

E o que é, hoje em dia… em 2024, quarenta anos depois…? E o que pode ser, no futuro?»

quinta-feira, 25 de abril de 2024

"Esperamos que nunca mais"...

É importante recordar o que foi o Estado Novo. O que foi o salazarismo.
As vezes que forem necessárias.
E o salazarismo foi, essencialmente, um tempo de miséria.
A miséria da mortalidade infantil, que a democracia fez desaparecer.
A miséria de um povo maioritariamente pobre, a viver em barracas e casas insalubres, sem água canalizada ou acesso a um sistema de esgotos.
A miséria do autoritarismo, da polícia política e das liberdades suprimidas, da prisão arbitrária e da tortura.
A miséria da ignorância, de um país de analfabetos, onde o ensino superior era um privilégio da elite protegida por Salazar.
A miséria da guerra, dos massacres e dos estropiados.
A miséria que levava os portugueses a fugir do país.
A miséria que obrigava uma professora primária a ser autorizada pelo Ministro da Educação para se casar.
A miséria de um regime que nos queria pobres enquanto entregava todos os negócios do Estado aos avôs daqueles que ainda são hoje os donos disto tudo. E que financiam os novos fascistas.
A mesma miséria que inventou a porta giratória e a corrupção política da qual ainda não fomos capazes de nos livrar.
Mas houve muitos que lutaram para que as coisas mudassem. 

A Liberdade, há 50 anos, estava a passar por aqui e então um  jovem de 20 anos perante a grandeza do momento, também cresceu. 
Portugal, em 1974, era uma sociedade a preto e branco, como um livro de colorir - a preto e branco, como todos os livros de colorir entre 1933 e 1974.
Portugal, em Abril de 1974, apresentava-se apenas com contornos desenhados à espera de ser colorido, como todos os livros de colorir.
Foi isso que entendi logo em 25 de Abril de 1974. E foi por isso, que decidi, que era importante, tentar colorir a minha parte. Como nunca tive muito dinheiro, só consegui comprar um simples lápis de cor - verde, que é a cor da esperança.
Mas, as cores são muitas e outros com outros meios e outros poderes, coloriram o meu país de rosa e de laranja...
Ter, em 2024, a oportunidade de estar vivo e ter a oportunidade, 50 anos depois, de recordar o que foi viver o 25 de Abril de 1974, que trouxe algo de verdadeiramente novo para a vida dos portugueses, faz-me sentir um priviligeado.

Contada por Luís Osório, como só ele o sabe fazer, fica a história de Conceição Matos, a mulher mais torturada pela PIDE, neste Dia de Todos os Sonhos do Mundo.

1.
Conceição Matos foi viver com os pais e irmãos para o Barreiro. Uma família de operários que chegou a uma terra de operários no final da década de 1930.
A Conceição tinha três anos quando a Segunda Guerra Mundial começou. Tinha três anos quando chegou ao Bairro das Palmeiras onde fez vida e construiu o sonho de um dia Portugal deixar de ser uma ditadura da mesma família dos fascismos de Franco, Mussolini ou Hitler.

2.
Conceição foi uma das mais torturadas na história do Estado Novo.

A doce Conceição Matos, mulher de Domingos Abrantes, que mantém os seus olhos sem ponta de ressentimento depois de tanto sofrer, depois do tanto que lhe fizeram.

A Conceição que depois da quarta classe feita começou a trabalhar numa máquina de costurar e depois numa fábrica de pirolitos onde lavava as garrafas.

Terra dura, terra de exploradores e explorados, de conflito de classes.

O Partido Comunista tornou-se parte da sua vida.
Da sua e dos irmãos – o Alfredo, o mais velho, foi levado para o Aljube aos 18 anos.

E ela tornou-se comunista.

Esteve na clandestinidade muitos anos.

Foi várias numa só.

Maria Helena, Marília, Benvinda.

Mas só teve uma única cara e um único nome na prisão.

3.
Conceição Matos resistiu a tudo.

Às tantas tornou-se um troféu de caça para os inspetores Tinoco e Madalena, dois monstros que faziam apostas para lhe arrancar uma palavra que fosse.

E irritavam-se porque da boca de Conceição não saia rigorosamente palavra nenhuma que lhes servisse.

Torturaram-na barbaramente.

Espancaram-na.

Arrancaram-lhe as unhas a sangue frio.

Obrigaram-na a estar imóvel durante horas e horas e horas.

Obrigaram-na à tortura do sono, dias e dias e dias.

Choques elétricos, humilhações atrás de humilhações, uma perversidade levada a uma categoria demencial.

Arrancavam-lhe a roupa até ficar nua. Tiraram-lhe fotografias que distribuíam aos agentes da PIDE na António Maria Cardoso. Homens que riam fazendo gestos de natureza sexual enquanto olhavam para o seu corpo e para a fotografia que guardavam nas suas mãos como violadores à espera da presa.

Deixaram-na vários dias sem poder ir à casa de banho. O seu corpo com urina, com fezes, com o sangue da menstruação.

E ela com a roupa que trazia, a ter de limpar a cela imunda com o que tinha, com a roupa que tinha.

E depois a raiva dos pides por ela não falar, os agentes a entrarem e a espancá-la uma vez mais e uma vez mais e uma vez mais.

A gritarem os nomes que imaginas.

Tudo o que imaginas.

4.
Conceição Matos, 87 anos, casada com o histórico Domingos Abrantes, dirigente marcante do PCP.

Uma das últimas provas vivas do combate e do sacrifício de tantos e tantas por uma ideia de liberdade. Ela e o marido, casados em 1969, em Peniche.

Conceição que é a prova de um combate corajoso por uma ideia de um mundo mais justo para quem nascia marcado com o ferro da desigualdade. Para gente como ela que nascia condenada a passar pela vida com um único objetivo: sobreviver.

Eu, filho de um comunista, mas crítico algumas vezes do PCP, não o esqueço.

E não o relativizo.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Para - e pela - memória futura

𝐎 𝐃𝐢𝐚 𝐝𝐞 𝐓𝐨𝐝𝐨𝐬 𝐝𝐨𝐬 𝐒𝐨𝐧𝐡𝐨𝐬 𝐝𝐨 𝐌𝐮𝐧𝐝𝐨 
𝗨𝗺 𝗽𝗲𝗾𝘂𝗲𝗻𝗼 𝗹𝗶𝘃𝗿𝗼 𝗰𝗼𝗺 𝘀𝗼𝗻𝗵𝗼𝘀 𝗲𝗻𝗼𝗿𝗺𝗲𝘀, 𝗮̀ 𝗲𝘀𝗽𝗲𝗿𝗮 𝗱𝗲 𝘀𝗲𝗿 𝗹𝗶𝗱𝗼 

Encontra-se já à venda, na Biblioteca e Museu Municipais, a mais recente edição municipal. 
“O Dia de Todos os Sonhos do Mundo”, da autoria do blogger e ex-jornalista António Agostinho, é uma reflexão sobre a Revolução dos Cravos, a partir da experiência de vida do Autor, antes e depois de 1974, e insere-se nas comemorações dos 50 anos daquele “dia inicial inteiro e limpo”. 

"Em 2024, 50 anos depois de Abril, a criança protagonista desta história, agora com 70 anos, quer acreditar que não é o 25 de Abril que está em causa. A seu ver, o que está em causa é o retrocesso de quase todos os valores de Abril. Em nome de um economicismo balofo que despreza as pessoas, estão a descaracterizar tudo o que de positivo, a nível social e laboral, foi conquistado nos anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974. Assiste-se ao esvaziamento de conquistas fundamentais da revolução, como o SNS e o direito à educação e à habitação."

Nota de rodapé.
As comemorações dos 50 anos do 25 de Abril atingiram uma amplitude, tiveram uma participação e revestiram-se de um alto significado que se impõe sublinhar. Refiro-me ao conjunto das comemorações já concretizadas – e muitas mais há em curso. 
Quer a nível nacional, quer a nível local – estas, menos visíveis nos media, foram (são) imensas por todo o país, em particular por iniciativa das autarquias.
Como é o caso da Figueira da Foz, que tem um programa que se vai estender durante um ano.

Para todos, e cada um de nós, as memórias são diferentes.
Cada um de nós tem muitas memórias. 
Todas essas memória constituem a história e reforçam as raízes de um País, de uma Cidade e de uma Aldeia.
Um País, uma Cidade e uma Aldeia, tem também muitas memórias.
Cada um de nós, tem muitas memórias.
A partir de hoje com a divulgação pública desta  pequena publicação, muitas das minhas memórias ficam diluídas na memória colectiva de quem a ler.
Há memórias individuais, que ao tornarem-se memórias colectivas podem contribuir para partilharmos com alguns experiências que nos ajudam a perceber de onde viemos e que somos.

domingo, 7 de junho de 2015

A ensinadela



"O que vive em nós mesmo irrealizado precisa nestes tempos dúbios da rijeza da pedra. Orgulho autêntico. Recusa da conivência, do arranjo disfarçado. Dignidade. Elementos de que se faz a vagarosa teimosia dos sonhos. E então a partida está ganha. Pode perdê-la o escritor (por outras razões, aliás) mas o homem vence-a de certeza."
"O Aprendiz de Feiticeiro" de Carlos de Oliveira 

PEDRO AGOSTINHO CRUZ, em 2009, era este menino.
Os anos, entretanto, passaram e o Pedro Agostinho Cruz, já o assumido fotojornalista, cresceu e aperfeiçoou o seu profissionalismo e o sentido de cidadania: quem o conhece a nível profissional, sabe que trabalha sempre com grande ética, rigor e dedicação. Daí, que a qualidade daquilo que faz - a arte de trabalhar para o “boneco” - seja a que muitos já conhecem.

Sobre o rol de peripécias que teve de enfrentar para chegar a amanhã – o dia da apresentação pública da exposição ALERTA COSTEIRO 14/15, na Casa dos Pescadores da Costa de Lavos, pelas 11 horas -, muitas histórias haveria para contar. Mas, hoje, não é o dia...

O mais difícil, em tempos difíceis e de escassez, é viver com valores. É manter, contra todas as ignomínias, o espírito aberto ao diálogo e à diferença, para não nos tornarmos iguais a eles. 
O ar do tempo que vivemos apela ao salve-se quem puder. Os poucos que prezam e defendem, para viver, o espaço vivo da cidadania, em democracia e liberdade, resistem. Mesmo, quando resistir possa parecer não resistir.

Em todos os momentos deste processo, a meu ver, o Pedro Agostinho Cruz  surpreendeu pela positiva.
Nenhuma das suas figuras de referência (eu sou uma delas) o tinha conseguido preparar para a postura de emancipação que assumiu a partir de Fevereiro passado e, sem esmorecer, partir, por decisão própria, para a aventura que foi manter vivo o desejo de concretizar a 100% este ALERTA COSTEIRO 14/15. O que vai acontecer amanhã.
O Pedro vai sair deste processo mais forte, mais experiente  e mais preparado para enfrentar a vida. Gostava era de saber onde foi arranjar esta capacidade de resiliência!..

Ele sabe, porém, que nunca esteve só no seu destino. Ele sabe que nunca vai estar só no seu destino. Ele sabe que a família não deixou e nunca deixará.
O Pedro conhece o passado da família - e valores como honra,  carácter, a palavra  - e nunca vai esquecer de onde veio. 
Todos nós temos passado que nos marca. O Pedro também já começa a ter. Mas alguns têm mais passado do que outros. Os conservadores a sério - e o Pedro é  -  não brincam com o passado. Assumem o passado. Honram o passado. 
Os cidadãos decentes - e o Pedro é  -  respeitam a tradição. 
O Pedro tem a herança do passado familiar nas veias e sempre a respeitou. Uma família é uma sucessão de gerações. Entrelaçadas. Ele conhece as dificuldades e os dramas vividos pela sua família,  geração após geração,  e a forma enérgica, digna e honesta como sempre foram enfrentados os problemas para se conseguir dar a volta por cima.
Desta vez, coube ao Pedro apanhar no percurso com uma infinita dose de estupidez. Valeu-lhe  o poder da qualidade do seu trabalho e a maneira corajosa como enfrentou a realidade e os demónios.
Da família, ele sabe que pode contar sempre com o abrigo espiritual e o apoio que o hão-de ajudar, como aconteceu neste caso, a curar as muitas cicatrizes que ainda lhe  vão chagar o corpo e a alma pela vida fora. Este, foi só um desafio que enfrentou com inteligência e valentia. 

Este, está ultrapassado. Mas, muitos estão para chegar.
Nunca se pode esquecer, porém, do seguinte:  o carinho é a sobrevivência da alma.
O Pedro é um jovem. Tem  muito percurso ainda a percorrer.
O caminho não é este: mostrar o que não se  é. Ou fazer piruetas ou outras macacadas  para cativar os vivas da multidão ululante. 
O caminho é este - o que tenta percorrer: confiar nas suas capacidades e fazer o trabalho em silêncio, com profissionalismo, honestidade, rigor, dedicação e competência.

Nunca devemos utilizar a memória como uma arma de arremesso contra ninguém. A memória, quando cumprimos o nosso dever, perante os outros e nós próprios, serve simplesmente para nos apaziguar e nos fazer viver em paz connosco mesmos.  
Uma Aldeia, tal como uma família, sem memória é uma comunidade desarmada perante os desafios do futuro e os seus perigos. 
Seremos nós próprios mais autênticos perante a sociedade se assumirmos, em todas as suas facetas, o nosso passado. E tu, apesar da tua juventude, já começas a ter passado.
Numa altura em que as notícias se transformaram num espectáculo de divertimento, mais do que um exercício de cidadania relevante - que também é -, a notícia da inauguração deste ALERTA COSTEIRO 14/15, é uma excelente notícia.
Pedro Agostinho Cruz: a democracia - a verdadeira democracia - exige a coragem tranquila dos que querem ser livres e estão dispostos a correr o risco de lutar pela liberdade. 
"Há sempre uma filosofia para a falta de coragem", como escreveu um dia Albert Camus.

O Pedro ainda é muito jovem, mas já demonstrou o que é ser um Homem de carácter
Para que o carácter de um Homem revele qualidades verdadeiramente excepcionais, é preciso ter a sorte de poder observar os seus actos durante anos. Se esses actos forem desprovidos de todo o egoísmo, se o ideal que os conduz resulta de uma generosidade sem par, se for absolutamente certo que não procuram recompensa alguma e se, além disso, ainda deixam na sociedade marcas visíveis, estamos então, sem sombra de dúvida, perante um carácter de excepção. 
Quando se vê um “puto”, reduzido aos seus recursos morais, ser capaz de ultrapassar dificuldades sem conta e concretizar este ALERTA COSTEIRO 14/15, até nós ficamos mais optimistas ao verificar que, apesar de tudo que se vive neste momento em Portugal, a condição humana continua admirável e a produzir jovens fantásticos. 
Não foi fácil a tarefa, acreditem – foi necessária ao Pedro muita firmeza de princípios, grandeza de alma, persistência, generosidade e altruísmo, para concretizar este ALERTA COSTEIRO 14/15
Perante isto, independentemente de o Pedro Agostinho Cruz ser meu sobrinho, ao relembrar todo o esforço feito por um jovem para concretizar este objectivo, o ser humano que ele é, merece, do meu ponto de vista, um imenso respeito. 
Não podemos esquecer que, 41 anos depois de Abril de 1974, circulamos em piso escorregadio. E pouca gente se arrisca a andar à vontade num piso assim...
Pedro Agostinho Cruz: obrigado por teres provado que há sonhos que conseguem sobreviver e realizar a 100%.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Assembleia Municipal de 28 de Abril de 2017

Hoje, a cidadania fez ouvir a sua voz no decorrer da Assembleia Municipal da Figueira da foz.
Oito cidadãos usaram da palavra. Sete para falarem sobre o  PDM e um para abordar o tema do Orçamento Participativo.
O responsável por este blogue foi um deles. Fica a minha intervenção.


Boa tarde a todos.

Não tenho partido, nem religião, nem pertenço a nenhuma sociedade secreta, também não tenho terrenos para urbanizar, nem nunca fui trabalhador, nem tive qualquer familiar a trabalhar na antiga fábrica Alberto Gaspar e, muito menos, tenho interesses no Cabedelo. Dou-me ao incómodo de estar aqui hoje porque acredito que só em Liberdade e com o exercício da cidadania, Portugal e a Figueira poderiam evoluir no sentido do progresso, da democracia e duma sociedade com oportunidades para os cidadãos.

Mas vamos ao concreto que o tempo é escasso.
Em novembro de 2006, em plena reunião de câmara realizada no dia 6, o então vereador PSD Paulo Pereira Coelho, manifestou-se contra a urbanização dos terrenos da Alberto Gaspar. 
Mas, sublinhou na altura, se tiver de ser feita, “que seja a autarquia a ganhar dinheiro a favor dos munícipes”.
Nessa reunião de câmara, o vereador da então maioria Paulo Pereira Coelho mostrou-se contra a alteração do Plano de Urbanização (PU) nos terrenos da Alberto Gaspar, em S. Pedro. 

No essencial, o PS, à época na oposição,  defendeu a mesma posição. 
Em 6 de novembro de 2006, já há dois anos, que os cerca de 70 trabalhadores tinham rescindido os contratos de trabalho com a empresa, alegando salários em atraso.
Passado todo esse tempo a administração da empresa pressionava os políticos com o argumento de que o dinheiro (perto de seis milhões de euros) da alienação dos terrenos a um grupo espanhol, que pretendia construir cerca de mil fogos em altura, era para pagar aos credores, incluindo os antigos trabalhadores. Mas Paulo Pereira Coelho defendia que “a câmara não teve culpa” que a Alberto Gaspar tivesse chegado à situação em que se encontrava.
Se os terrenos (de 12 mil metros quadrados) estão na massa falida, a câmara que vá lá e que os valorize, que os venda e que ganhe dinheiro com eles a favor dos munícipes”, sugeriu Pereira Coelho. 
Isto, no contexto de o antigo presidente  Duarte Silva manter a decisão de avançar com a alteração ao PU, porque Pereira Coelho deixou claro estar contra a transformação de terrenos industriais numa área de “especulação imobiliária”.
Como era óbvio,  a situação dos trabalhadores estava a ser usada como modo de pressionar a câmara de então a tomar decisões.

Agora, em finais de Abril de 2017:
Dado que os terrenos foram cedidos pelo Estado para a implantação de uma indústria, acabada que está a função para a qual os terrenos foram cedidos à Alberto Gaspar, não estará na escritura de venda então feita, salvaguarda uma  cláusula de reversão dos terrenos?

Em 2005, como membro da Direcção de uma instituição de solidariedade desta cidade, assinei uma escritura com o Estado, que vendeu os terrenos à Instituição, onde ficou salvaguardado que aqueles terrenos eram para ser utilizados pelo Centro Social da Cova e Gala para fins sociais. Se a instituição, por qualquer motivo acabar, os terrenos voltam  à posse do estado e não podem ser vendidos pelo actual proprietário, por exemplo, para a especulação imobiliária.

Será justo, depois da forma vergonhosa como foi resolvido em desfavor dos trabalhadores o caso da falência da firma Alberto Gaspar,  que venham a ser os herdeiros do Alberto Gaspar a beneficiar com as mais valias que a transformação de terrenos, que foram cedidos em condições especiais para uso industrial, em terrenos para a especulação imoblilária, vão proporcionar?

Neste executivo camarário, está um membro há quase 8 anos, que antes de estar no poder, tinha uma posição claríssima sobre isto e passo a citar:

Os terrenos foram vendidos a preço muito baixo para a actividade industrial; uma vez abandonada esta, era natural que os terrenos pudessem reverter para os seus proprietários, o Estado e a autarquia” (in Figueira da Foz- Erros do passado, Soluções para o Futuro, pág. 49, obra publicada em Setembro de 2009)

Pergunto: em 8 anos teve alguma iniciativa para ver se a reversão a favor do Estado dos terrenos da firma Alberto Gaspar era possível?
O que vai ser permitido construir nos terrenos da Alberto Gaspar?
Para além da permeabilização dos solos, que é preciso preservar, a falta de inserção do que esteve previsto construir naquela zona (por exemplo, um hotel com 18 pisos...) na malha urbana era evidente, o que tornaria aquele local numa "ilha" na estrutura sociocultural da Aldeia, vai ser impedida?
Isto é importante, porque para alguns o desenvolvimento ainda continua a ser a construção e avanço do betão...

Dado que tenho de terminar a intervenção, peço só mais um minuto de atenção.

Sobre o Cabedelo quero saber tudo. Num dia da outra semana, com o arquitecto Miguel Figueira e o Eurico Gonçalves, fui à junta de freguesia de S. Pedro para tentar ver o Projecto do Cabedelo e não pudemos, pois o presidente não estava e o projecto estava no seu gabinete. Eu pensava que um projecto daqueles, deveria estar acessível, por exemplo exposto no hall de entrada do edifício para análise.
Como não é assim um vulgar cidadão, como eu, só encontra dificuldades... Mas, isso nunca me irá desanimar: a minha vida tem tido sempre muitas dificuldades...  
Tenho dito. 
António Agostinho

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O discurso que o dr. Delmar Damas não teve a hipótese de concluir na Assembleia Municipal fica aqui na íntegra.
Uma intervenção magnífica hoje na Assembleia Municipal da Figueira da Foz, digna de ser publicada em toda a sua extensão e lida com atenção:

A Urbe Figueirense e o seu desenvolvimento sustentável - Assembleia Municipal de 28 Abril 2017

Senhor Presidente da Assembleia Municipal; Senhoras Deputadas e Senhores Deputados Municipais; Senhor Presidente da Câmara Municipal; Senhoras Vereadoras e Senhores Vereadores, e demais presentes, os meus respeitosos cumprimentos.

A Carta de Aalborg, teve a sua génese na 1ª Conferência Europeia das Cidades e Vilas Sustentáveis, evento ocorrido naquela localidade dinamarquesa em Maio de 1994, e traduz-se numa Campanha para a real vinculação política das autoridades locais na adopção de políticas de desenvolvimento sustentável das cidades, vilas e comunidades rurais, a fim de se comprometerem com as melhores práticas para a sustentabilidade do ambiente da urbe, reflectindo e fazendo intercâmbio de experiências para que sirvam para a elaboração de recomendações que possam influir nas políticas europeias de desenvolvimento sustentável local. Como objectivos, pretendia-se uma reflexão séria e responsável das autoridades locais sobre, por exemplo:

- economia urbana com a conservação do seu capital natural;

- correcto ordenamento do território;
- mobilidade urbana;
- a equidade;
 - participação das comunidades locais nas tomadas de decisão e alcance de consensos;
- conservação da natureza, etc.

Por capital natural, entende-se, mais do que o conjunto dos recursos naturais, o valor que a natureza tem para as comunidades.

A ela aderiu o Município da Figueira da Foz em Agosto de 1996.

A 8 de Outubro de 1996, no âmbito da 2ª Conferência Europeia das Cidades e Vilas Sustentáveis, que teve lugar na nossa capital, surge o “Plano de Acção de Lisboa: da Carta à Acção”, visando a aplicação efectiva da referida Carta de Aalborg, passando-se da fase da reflexão para a fase da concretização, lançando-se a Agenda Local 21.

Isto para dizer que as autoridades do município da Figueira da Foz estão comprometidas com as boas práticas da gestão urbana no que concerne à observância dos objectivos da Carta de Aalborg.

Ora bem, as autoridades dos municípios que aderiram, em especial as nossas, não podem fazer letra morta destes objectivos e seus compromissos numa rede de comunidades europeias. Razão pela qual, entre nós, as autoridades locais criaram o Plano Estratégico de Desenvolvimento da Figueira da Foz, que incorpora aqueles objectivos.
Hoje, que discutimos as alterações ao PDM, instrumento magno da gestão do ordenamento do território municipal, não podemos ficar insensíveis a decisões de gestão local que causam polémica e fricção com as comunidades locais e sobre as quais, pela sua dimensão e consequências, não há possibilidade de consensos e põem em causa a economia da cidade e seu capital natural; o correcto ordenamento do território e a conservação da natureza. Numa frase: o seu desenvolvimento sustentável.
Considerando que no fulcro do desenvolvimento sustentável estão as comunidades locais e sua relação harmoniosa com o seu espaço local, constatamos que se nas comunidades rurais, por hoje existir saneamento básico nas mesmas, resulta polémica e de nenhuma compreensão a quase impossibilidade de os filhos construírem as suas casas nas localidades onde nasceram e onde viveram com seus pais, e onde têm terrenos, empurrando-os para as freguesias urbanas, repletas de construção vazia, e contribuindo para a desertificação das rurais, já de si envelhecidas e desmotivadas nos projectos agrícolas; por outro lado, temos que considerar, na civitas, stricto sensu, atento os graves erros urbanísticos do passado com a edificação urbana, a necessidade de preservação de espaços verdes para fruição pública, de relevante importância, como é o caso do tão falado e vetusto “Corredor Verde”, que vai desde o Jardim, junto à foz do Mondego, seguindo pelas Abadias até ao Parque de Campismo e deste à Serra da Boa Viagem.
Lembro que aquando do terrível incêndio ocorrido no Verão do longínquo ano de 1993, em que ardeu a Serra da Boa Viagem, deixando uma mancha cinzenta no chão, onde subsistiam em pé medonhos espectros negros do que foram árvores, surgiu em defesa da sua reflorestação o Movimento Serra Verde, de que tenho o grato prazer de ter sido um dos seus fundadores. Tivemos, conjuntamente com toda a comunidade local, uma actuação relevante até em pedagogia, com milhares de crianças, das diversas escolas do nosso concelho, a deslocarem-se à Serra e a participar, durante vários dias, na sua reflorestação; e o mais gratificante foi ver depois esses alunos (hoje mulheres e homens feitos e com memória!) a voltar lá aos fins-de-semana com os pais, levando água e regando, num compromisso tocante com a Natureza. Hoje está lá uma enorme mancha de pinheiros e uma pedra comemorativa do evento.
Em 1997 voltámos para defender o espaço do Parque de Campismo e Horto Municipal que o Executivo de então pretendia alienar para construção, o que foi evitado pela oposição enérgica de milhares de munícipes numa petição então apresentada e que teve também por grande impulsionador o meu amigo e Colega Dr. Luís Pena, entre outros, Colegas e amigos que também a assinaram. Lembro-me que na altura surgiu a candidatura de Santana Lopes que, colando-se a esse movimento de oposição, defendeu publicamente a manutenção daquela área; porém, depois das eleições ganhas, veio defender, através da sua Vereadora Rosário Águas, que não fazia sentido um parque de campismo no meio da cidade, demonstrando interesse em o alienar… adivinhámos que para construção! Na altura era o vibrante “Linha do Oeste” o nosso “combóio” que nos levava na pulsante viagem contestatária, e onde publiquei, em resposta, um extenso artigo de opinião dirigido ao Chefe do Executivo lembrando-o que o que estava em causa não era a existência ou não de um parque de campismo no meio da cidade (o qual poderia estar noutro lado qualquer), mas a preservação daquele espaço arbóreo intacto para fruição pública, como Parque da Cidade ou outra valência ecológica. A “coisa” ficou por ali, mas a tentativa ficou registada.
Em 2007, face à possibilidade de aptidão construtiva, nova petição, também com milhares de assinaturas, desta feita a requerer, na revisão do PDM, a preservação de todo o espaço envolvente do parque de campismo: o próprio parque, o prédio confinante a Norte/Nascente, e o Horto Municipal.
Hoje, 2017, tudo se repete. Conclui-se que os anos terminados em 7, e num ciclo de 10 em 10 anos, são funestos para o espaço do parque de campismo e áreas contíguas.
Hoje temos a singular, insólita e paradoxal particularidade de termos signatários dessas petições no actual Executivo que, entretanto, entendem que as circunstâncias se alteraram e se justifica o sacrifício de “uma dentada” no Horto, pois que é essencial que assim seja em prol do desenvolvimento económico do nosso concelho. E explicam: O Jumbo tem necessidade de se alargar, não tem para onde, e quer trazer aquilo que hoje muito avançadamente chamam de “lojas âncora”. Ou seja, lojas de marcas mundialmente famosas que, na óptica do Executivo e de quem o convenceu da ideia, atraem à nossa cidade clientes de outras bandas e fixam (daí o nome âncora) os de cá, que, deste modo, não vão fazer compras a outros lugares fora do concelho. Isto cria riqueza na economia local e estima-se que se crie, por consequência directa, cerca de 2.000 postos de trabalho.
São estes os argumentos, grosso modo, para o sacrifício do perseguido Horto Municipal. Perseguido e sacrificado, pois aquando da construção do Jumbo já havia levada uma “dentadinha”. Pelo que, com mais esta dentada que pretendem dar, estamos bem em crer que o pobre Horto de perseguido e sacrificado passará, definitivamente, a finado. Daí a dar-se uma dentadinha no parque de campismo é coisa de tempo, não importando que Executivo, e bem se vê onde tudo irá parar.
Eu compreendo o argumento do Executivo, e todos nós o percebemos e, secretamente e num primeiro impulso, até somos levados a concordar. É que isto de 2.000 empregos, numa terra onde há míngua de trabalho e nesta crise que atravessamos, a uma dentadinha, ou mesmo uma dentada mais saciante, nós, olhando cumplicemente para o lado, nem sentíamos… e apenas lhe desejávamos ao Horto uma morte serena, indolor.
O problema é que o argumento não é sério!
Ninguém acredita que se criem 2.000 postos de trabalho. Isso é uma falácia, uma impossibilidade lógica. Se fosse a Mega Tesla a instalar-se no Horto ainda vá que não vá, mas não o Jumbo, pois se com aquela superfície toda já em funcionamento nem de perto nem de longe os emprega, como se daria esse milagre no Horto? Onde estão os estudos que o comprovam?
Se calhar nem 200, nem 100, muito provavelmente.
Quando eu digo que o argumento não é sério vale dizer que o argumento não é válido. Mas isto não implica, de modo nenhum, que o Executivo que o apresenta não seja sério. É sério, com certeza. Mas o Executivo não tem experiência empresarial; não domina as rebuscadas técnicas do mercado da construção civil, do interesse imobiliário das grandes superfícies. O Executivo está, e bem, mais preocupado em gerir, da melhor forma possível, a coisa pública. O Executivo, naturalmente, quer o bem do seu concelho. O Executivo, qualquer Executivo, quereria um investimento para o seu concelho que gerasse 2.000 empregos. Isso é o sonho de qualquer Executivo camarário. Pelo que compreendo que, numa abordagem, ao incutirem no Executivo a possibilidade de, com um investimento desses, se criarem 2.000 empregos, este, de boa-fé, se entusiasmasse a tal ponto que até antigos e férreos defensores do Horto, ora Vereadores aqui presentes, agora entendam que uma “dentada” a mais ou a menos pouca diferença fará, que diacho. Venham os empregos! E, já no reino da semântica, das palavras que permitem defender com toda a elegância e convicção uma coisa e o seu contrário, numa aperaltada argumentária desculpante, já dirão que, afinal, não passa de um horto, meio enfezado até, e nem há já jardineiros municipais para dele cuidar, e tem lá uns armazéns feios e um canil degradado, uma coisa pavorosa. Um bem de Deus que desaparecesse, que assim não definhava tanto e ia num sopro. Leve-o Deus.
Todos nós compreendemos o legítimo entusiasmo do Executivo e, portanto, também compreendemos que, levado por aquele equívoco, lhe queira dar capacidade construtiva nesta revisão do PDM. Mas, não se deixe o Executivo arrastar nesta ilusão dos 2.000 empregos que mais se tornou numa questão de fé, de ingénua crença, do que propriamente algo objectivo e que lhe toldou o espírito. Que faça uma pausa para reflexão, uma fria pausa, para que arrefeça no entusiasmo, e peça (nem era preciso tanto!) a um economista da câmara que faça as contas dos empregos, sob pena de continuarmos a olhar para o Executivo com a mesma postura com que se olhou para o célebre e embaraçante momento em que o Eng. António Guterres, atrapalhadinho com os cálculos que o teimavam em afligir recusando-se a vir à luz do dia, pois por vezes os números são mais matreiros que as palavras, soltou a aliviante e gaguejante expressão que ficou para a história: “Bem... é…é… é só fazer as contas.”
Melhor fora que subisse o Jumbo em altura, sendo que mais um piso em nada destoava e muito menos comparando com o que destoaria o acimentar do Horto. E se o argumento for o do PDM o não permitir, então melhor fora que se propusesse a sua alteração nesse particular. Assim tudo se resolvia a contento de todos.

Os poucos espaços verdes existentes na urbe são de preservar! Ainda ontem o nosso caríssimo amigo Engº Daniel Santos, na sua intervenção no debate sobre o PDM, promovido pela Associação FigueiraViva, dizia que, por princípio, era a favor da preservação dos poucos espaços verdes ainda existentes na cidade, até como forma de compensação pelos graves erros urbanísticos cometidos no passado. E quanto ao Horto, não abdicando desse mesmo princípio de preservação, referiu que só se sabendo previamente o que para lá se pretendia fazer e que área ocupava é que se poderia avaliar da justificação ou não do seu sacrifício. E este é um dos erros do actual Executivo: previamente não nos diz nem que área nem o que concretamente ali se pretende ao certo fazer, de modo a se avaliar, com clareza, da justificação do seu sacrifício. Pelo que, ao se inserir o Horto, na actual revisão do PDM, em área com capacidade construtiva, é passar-se um cheque em branco para se usar quando e como bem se entender. E isso, com todo o respeito e com toda a frontalidade, não pode ser! E não pode ser porque se assim fosse se desvirtuava a relação de confiança com a comunidade. Ninguém deve passar cheques em branco a ninguém. É uma questão de mero bom senso e prudência. E ninguém de bem pode querer aceitar cheques em branco de quem quer que seja, pois a honradez lho impede.

Resultou ainda, desse debate de discussão do PDM, o apontamento de uma exagerada malha de grandes superfícies comercias na periferia da urbe, justificando-se mais a aposta do comércio, mesmo o das grandes superfícies como é o caso do Jumbo, no coração da cidade, o qual anda deserto, esquecido, degradado, e já não bate.

O Horto, esse invulgar espaço verde, campo de cíclicas contendas e que vive em permanente sobressalto, para o qual alguns olham, quais “lagartas” cheias de larica, com irresistível vontade de o dentar, deve ser considerado para futuro, e de modo definitivo, como parte integrante da área do Parque de Campismo, e este da grande área do “Corredor Verde”. Mantendo-se um grande espaço verde necessário ao bem-estar da comunidade que, após a destruição do Pinhal Sotto Mayor e agora a extinção da emblemática Quinta de Santa Catarina e sua extensão a Nascente, vê nesse “Corredor” o símbolo de uma natureza mínima presente numa cidade de betão, cada vez mais descaracterizada e de tantos prédios vazios que, pelo menos, manteria assim o resquício dos objectivos assumidos na Carta de Aalborg que se voltam aqui a lembrar, por nunca ser demais fazê-lo:

- economia urbana com a conservação do seu capital natural;

- correcto ordenamento do território;

- equidade;

- participação das comunidades locais nas tomadas de decisão e alcance de consensos;
- conservação da natureza.
Senhor Presidente da Assembleia Municipal; Senhoras Deputadas e Senhores Deputados Municipais; Senhor Presidente da Câmara Municipal; Senhoras Vereadoras e Senhores Vereadores, e demais presentes,
termino dizendo que, na reunião de Câmara de 17 de Abril de 2017, o meu amigo e Colega Dr. Luís Pena, na sua intervenção chamava a esta casa a “Casa da Democracia”. Eu não tenho esse seu agudo espírito político/filosófico, sou mais do género contemplativo, pelo que a chamaria, no objecto desta minha intervenção, de “Casa do Silêncio”. Do Silêncio porque tantas vezes aqui se decide o destino de tanta coisa que não tem, nem ninguém lhe dá voz, mas que a deveria ter. E só percebemos que há coisas que não têm voz mas a deveriam ter, quando, superando a azáfama anestesiante do nosso dia-a-dia, tivermos a capacidade, por exemplo, de parar e olhar em nosso redor. Veríamos a natureza fascinante que, já em tão poucos redutos, ainda subsiste na nossa cidade de betão e cada vez mais abandonada de gente que parte por, lamentavelmente, não haver o que cá a fixe. Reparem nas árvores verdejantes, nas flores que despontam na força maternal da Primavera; nos pássaros que agora nidificam e enchem os nossos céus de chilreios e movimentos de vida graciosos; reparem no pequeno corgo que passa pelas Abadias como um fino espelho onde o céu se reflecte e as aves saciam a sua sede e as libelinhas pairam com asas de finas rendas e as rãs coaxam.
Quando acordamos das nossas vidas agitadas deparamo-nos com um mundo mágico que sempre esteve ao nosso lado… mas que já não temos a capacidade de o ver.
Sabem que tudo isto vive e não tem aqui voz?!
A voz que tem é apenas a dos milhares que ao longo de décadas o têm defendido.
Quantas petições entraram nesta casa com 4.000 assinaturas? Quantas?!
Percebem, então, a importância “espiritual”, chamemos-lhe assim, que este mundo mágico representa para tanta gente?!
Hoje, eu trouxe-vos a esta “Casa do Silêncio” a voz desse mundo mágico e das vozes dos ausentes que sempre o defenderam. Hoje, vocês ficam com a responsabilidade de cuidar ou destruir esse mundo.
Lembrem-se que é de mundos mágicos que nascem os sonhos das nossas crianças. De crianças que também os ajudaram a criar (recordo aquelas milhares da Serra da Boa Viagem!) e hoje, já adultos, talvez pais, esperam de vós que tenham a coragem de permitir que as nossas crianças continuem a sonhar. A sonhar na nossa cidade!
Cabe-vos a vós decidir enviar para o Horto Municipal ou um jardineiro, que dele cuide, ou uma máquina que a ele o arrase.
Despeço-me, pedindo a cada um de vós que hoje, se possível, no you tube, vejam o pequeno filme sobre um livro infantil de José Saramago chamado “A Maior Flor do Mundo”. Compreenderão o espírito desta minha intervenção e o quanto é necessário salvaguardar todos estes preciosos e já poucos espaços verdes que referi, de um mundo de apetência desenfreada pelo estéril betão que nos esmaga e acinzenta… porque nos rouba os sonhos!
Encheu-me de esperança a recente deliberação da Assembleia de Freguesia de Buarcos e S. Julião, a uma proposta apresentada, sem nenhum voto contra, no sentido de que “toda a área que compõe o Horto Municipal e terrenos adjacentes a norte/poente do Parque de Campismo seja afecta e integrada no terreno do Parque de Campismo”.
Ou seja, aquilo que, afinal tanta gente vem defendendo há mais de 20 anos; gente que mostra assim coerência. Coerência que, para outros já moldados pelo implacável Tempo, e que eu, apesar disso, muito estimo, não passará, erradamente, de mera obstinação.
Dizia então, em extracto da acta de Reunião de Câmara Municipal de 06/06/2008, um nosso muito querido e estimado Vereador, aqui presente, relativamente ao Horto: “A educação das crianças e jovens faz-se cada vez mais em espaços fechados, fora dos ambientes naturais e na ausência duma sã conjugação com a natureza; Por esta razão, a natureza está cada vez mais distante dos espaços de aprendizagem e convívio, dando lugar a outros, mais artificiais e mais desumanos; proximidade da natureza e a educação ambiental são assim um imperativo da formação das crianças e dos jovens, sobretudo daqueles que crescem e vivem dentro dos espaços urbanos. Percepcionar os ciclos de vida e a dependência e ligação do homem a estes, contribui para a construção de seres mais sensibilizados para a real posição do ser humano no planeta.
Assim, com os objectivos e nos termos abaixo indicados, os Vereadores do Partido Socialista propõem a esta Câmara a criação de uma horta/quinta pedagógica a funcionar no local do actual Horto Municipal. Com esta proposta, o Horto passa a ter uma nova valência, permitindo retirar do seu funcionamento uma mais-valia acrescentada que, de outra forma, se perderia. A sua situação privilegiada e o know-how que já detém, fazem dele o local por excelência dos objectivos que se pretendem atingir.
Ao mesmo tempo, os professores e a comunidade educativa em geral têm necessidade de um laboratório desta índole, pois está-se perante uma valência educativa e uma infra-estrutura com uma funcionalidade que hoje inexistem;
O Horto Municipal e a Horta/Quinta Pedagógica prestarão também um serviço até agora inexistente, estando abertos e disponíveis para as horas de lazer das famílias”.

Senhor Vereador, Senhor Vereador… isso que disse e defendeu é Belo, é isso mesmo que sempre e agora defendemos. O Belo é imutável, é eterno, é intemporal… e carente de defesa constante! Quem lhe abandona a defesa?!

Saibam, que contra o Belo não se vence; perde-se mesmo vencendo!
Bem-haja.
Delmar Damas

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

O tempo que passou e que parece esquecido

Os militares de Abril ofereceram-nos a Liberdade. Todavia, construir uma Democracia é muito mais do que Liberdade. Numa Democracia, os governantes são eleitos através de eleições justas e competitivas. Não há Democracia sem liberdades civis e direitos humanos.

A Democracia contrasta com formas de governo em que o poder não é investido na população geral, como acontece em sistemas autoritários.
Para ilustrar algo de que muitos ainda se recordam, publico uma breve passagem da edição municipal “O Dia de Todos os Sonhos do Mundo”, da autoria de António Agostinho, uma reflexão sobre a Revolução dos Cravos, a partir da experiência de vida do Autor, antes e depois de 1974, e insere-se nas comemorações dos 50 anos daquele “dia inicial inteiro e limpo”: A EXPLORAÇÃO DOS PESCADORES NO ESTADO NOVO.


Os armadores, com a protecção e a cumplicidade dos mandantes do regime corporativo, que beneficiavam e dominavam o comércio das pescas nacionais - alguns deles também eram proprietários de alguns desses navios - permitiam que as condições de vida a bordo dos navios de pesca, antes do 25 de Abril de 1974, fossem tão desiguais entre a tripulação, que é muito difícil ao cidadão comum aceitar, nos dias de hoje, esta diferenciação tão absurda e desumana. Enquanto que ao Comandante e restantes oficiais (incluindo especialidades ligadas às máquinas) as refeições diárias eram compostas por sopa, prato de peixe, prato de carne e fruta, aos pescadores era servido ao almoço e jantar apenas sopa e um único prato (geralmente peixe) tendo direito numa das refeições a um prato de carne apenas às quintas-feiras e domingos, composto por chispe com feijão ou carne salgada conservada em barricas de madeira. Aos camarotes dos primeiros (que exibiam alguma comodidade apesar da exiguidade do espaço) eram fornecidos pela Companhia Armadora os colchões, enquanto que aos pescadores era-lhes exigido que os trouxessem de casa, se quisessem ter comodidade mínima no fundo dos porões onde dormiam amontoados, convivendo de braço dado com a insalubridade. A remuneração era constituída por um salário mísero, que não era proporcional à extrema dureza do trabalho que efectuavam.
E, tudo isto, permitido e incentivado pelo regime do Estado Novo. Muitos, onde se inclui o Almirante Henrique Tenreiro, enriqueceram com a epopeia das pescas. Vivendo sempre à sombra dos privilégios que o regime lhes concedia, procuravam ostentar uma pose de beneméritos, quando no fundo se aproveitaram da extrema pobreza e das necessidades dos mais carenciados para fazerem deles os “eternamente agradecidos”, enquanto eles se auto intitulavam os “historicamente benfeitores”.


Sempre foi assim. E, em certos aspectos, continua assim. Continua a haver mandantes no Portugal Europeu e Democrático, pós 25 de Abril.
Para os que acreditam no que por aí se publica nos jornais, fica este texto de Miguel Szymanski.
"Fui dispensado de vários jornais por me recusar a fazer fretes. Na revista Sábado o director, na altura, hoje já reformado do jornalismo, veio ter comigo e disse "lamento mas és persona non grata junto da administração". O empresário André Jordan tinha-se queixado de uma entrevista que lhe fiz e que nunca foi publicada. No grupo do Diário Económico foi Ricardo Espírito Santo Salgado quem se queixou que eu o retratara "como se fosse um gatuno" e ameaçou retirar publicidade do grupo. "Não te posso dar mais trabalhos para escrever, lamento, ordens superiores", disse-me o director do jornal. Na revista GQ (onde publicava crónicas) as queixas vieram numa carta de Jardim Gonçalves. No último artigo que escrevi para o Expresso (o contrato como colaborador nunca foi rescindido) critiquei Sócrates quando ainda era primeiro-ministro. Recusei pedidos de artigos para a revista Up da TAP (sobre a EDP) porque eram fretes. A minha mulher foi despedida da Cofina por se recusar a escrever 'publi-reportagens', textos publicitários mascarados de jornalismo. A directora da revista exigia-o, ela insistiu em recusar-se e o director de recursos humanos, genro do patrão da Cofina, disse-lhe "o salário ao fim do mês também não vem com código deontológico". Despediram-na. Por causa disso a minha mulher e eu tivemos de sair de Portugal e de ir trabalhar para a Alemanha. Fomos de carro, ambos desempregados, com meia dúzia de malas na bagageira e duas crianças no banco de trás. Não foi fácil. Ser jornalista não é fácil."


Na foto, Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira, conhecida como Maria Archer (Lisboa, 4 de Janeiro de 1899 - Lisboa, 23 de Janeiro de 1982). Foi uma escritora portuguesa e uma Mulher mais do nosso tempo do que do seu tempo. Durante a vida, Maria Archer foi uma inconformista, consciente das discriminações e das injustiças, em geral, e, em particular, das que condicionavam o sexo feminino, numa sociedade retrógrada e, como se diria em linguagem actual, "fundamentalista", em que o regime impôs a regressão às doutrinas e práticas de um patriarcalismo ancestral.

A escrita, servida pelos dons de inteligência, de observação e de expressividade foi para Maria Archer uma arma de combate político. Como disse Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante".
Maria Archer, grande escritora, foi homenageada no dia 22 de Agosto de 2015, na Cova-Gala. Em em 1938 na sua novela "Entre Duas Viagens" escrevia assim sobre nós.
"No primeiro domingo de Janeiro faz-se na Cova a romaria anual a São Pedro, padroeiro dos pescadores. No extremo da povoação, num ermo desabrigado, ergue-se a pequena e humilde capela do santo. Em redor alongam-se as dunas cobertas de juncos, enquadradas pelo pinhal e pelo mar. S. Pedro, se viesse dos areais da Judéia, com as suas rústicas sandálias de caminheiro pobre, as suas barbas austeras, a face tostada pelo ar salgado, sentir-se-ia à vontade entre a gente da Cova e no seu agreste cenário de deserto ribeirinho".
Foi um combate em que a sua vida e a sua arte se fundem - norteadas por um ostensivo propósito de valorização dos valores femininos, de libertação da mulher e, com ela, da sociedade como um todo.
Ela é já uma Mulher livre num país ainda sem liberdade - coragem que lhe custou o preço de um longo exílio ...
Maria Archer é uma grande escritora E pode ser lida apenas como tal. Mas permite também diversas outras leituras.