"Gonzalo não detém meios de produção. Não é dono de terras nem de fábricas. Não é sequer proprietário do seu próprio teto. Tem de trabalhar num emprego que muito provavelmente é por turnos e cujo pagamento não andará muito longe do salário mínimo espanhol. E mesmo assim não se sustenta. Mesmo assim, não consegue viver fora de casa dos pais. Mas, apesar de tudo isso, acha que não é da classe trabalhadora. Gonzalo identifica-se como classe alta. E quem sou eu para contrariar aquilo com que alguém se identifica?
Gonzalo é o oprimido ideal. Não questiona a sua própria condição, porque acha que é tudo uma questão de esforço. E ele está a esforçar-se. Se todo esse esforço não der em nada, pode sempre culpar os “subsídio-dependentes”, os imigrantes, os negros ou os ciganos. E só o facto de os apontar a dedo e de lhes cuspir na cara, nem que seja apenas em caixas de comentários das redes sociais, o fará sentir-se melhor. E é sentindo-se melhor, julgando ter “o pack completo de beto”, que será gozado pelos betos a sério, aqueles que nasceram em famílias ricas como a da marquesa com quem ele sonha, que estudaram nos melhores colégios e mal nasceram estavam já destinados a ser acionistas de grandes empresas, proprietários de latifúndios, donos de contas bancárias recheadas, com as quais podem comprar casas como aquela em que Gonzalo vive com os pais, para as transformar em fichas de casino, enviando o dinheiro, livre de impostos, para paraísos fiscais, enquanto o pobre repositor de supermercado pena no inferno doméstico. Gonzalo está contente consigo próprio. Os herdeiros ricos também. E agradecem-lhe muito que lute pela baixa dos impostos, que queira ver a saúde pública reduzida a nada, para aumentar a quota de negócio dos privados, que desdenhe de sindicatos e lutas de trabalhadores, que se mostre contente por ser precário e flexível. E culpe sempre os de baixo.
O mais certo é que Gonzalo nunca se case com uma marquesa. Mas a marquesa deve-lhe muito mais do que pode imaginar."


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