«A canonização de Mário Soares por ocasião dos cem anos sobre o seu nascimento tem pouco de surpreendente para quem conhecer de Serge Moscovici a definição de sociedade como “machine à faire des dieux”. Sacros ou profanos, os deuses que criamos destinam-se acima de tudo a abençoar os seus crentes e criadores e, já agora, se necessário, a amaldiçoar os seus incréus. Soares, como qualquer outra figura humana, assim o fez, honra lhe seja, não enquanto presumível deus, mas enquanto controvertido homem.
Transformar Mário Soares no homem a quem devemos a liberdade e a democracia, naquele que raramente teve dúvidas e nunca se enganou, como se deduz do encómio segundo o qual ele esteve sempre “do lado certo”, é um erro de destinatário, por um lado, e um golpe de facção, por outro lado.
Devemos abril aos seus militares. Devemos a revolução aos seus revolucionários. Devemos a contrarrevolução aos seus contrarrevolucionários, um dos quais foi, sem dúvida, Mário Soares. O mesmo Mário Soares que, com a coragem moral e física que devemos reconhecer-lhe, se reunia diariamente com Frank Carlucci no sótão da embaixada norte-americana em Portugal, enquanto gritava, mentindo publicamente, contra a sujeição dos comunistas a Moscovo (imagine-se que era Álvaro Cunhal quem se reunia diariamente com o embaixador soviético em Portugal!!!).
O mesmo Mário Soares que, com a coragem que se lhe deve reconhecer, encheu a Presidência da República de spinolistas que no PREC tinham organizado a conspiração consumada em novembro de 1975, num arco extenso que se estendia do ELP/MDLP, ex-agentes e responsáveis da PIDE/DGS até ao Partido Socialista, passando por embaixadas e serviços secretos como os alemães, a CIA ou o MI6 -de onde veio a bomba que matou o padre Max e a estudante Maria de Lurdes, por exemplo. Rui Mateus conta bem isso. E Edmundo Pedro, preso quando ia devolver as armas que lhe tinham sido entregues para o 25 de novembro, pode corroborar e bem o fez, como foi abandonado por Eanes e por… Mário Soares.
Uma coisa é jantar descontraidamente, ou viajar sibariticamente com Soares através do mundo, receber das suas mãos prémios (como foi o meu caso, enquanto jornalista, aliás) e prebendas, outra é partir daí para acreditar no slogan “Soares é fixe”. Soares era fixe para com quem era fixe para com ele. Quem não o fosse ou deixasse de o ser, percebia como o slogan era isso mesmo, uma invenção de propaganda.
Respeito a figura de Mário Soares, na medida em que se pode respeitar um adversário de valor. Não para lhe maquilhar de inteligência a esperteza, não para nele confundir a atração que o seu poder exercia sobre a intelectualidade aprazível com algum dote de cultura excecional. Soares era um político hábil, muitas vezes no pior sentido deste adjetivo aplicado àquele substantivo, mas não era um intelectual. Foi uma figura histórica, mas não um vulto da cultura. Teve um programa ideológico-político para o país e um projeto pessoal para si mesmo. Cumpriu-os a ambos. E como a história é feita pelos vencedores, são esses que fazem de Soares, como sempre fizeram desde que ele se tornou um potentado neste país, mais do que ele foi. O que é por bajulatória uma forma de o tornarem menos do que ele foi.»