O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, disse ontem em Beja algo que agrada a Luís Montenegro: que o Governo não tem nenhuma "obsessão ideológica" que o impeça de recorrer ao setor privado, quando entende ser adequado, nem para "diminuir" o setor público.
O ministro foi confrontado, no final de um dia no distrito de Beja, no âmbito da iniciativa Saúde Aberta, com palavras dos líderes do PSD e do Bloco de Esquerda sobre o caso de uma grávida que foi transferida, no domingo, do Hospital de Santa Maria para uma maternidade privada.
Luís Montenegro, do PSD, acusou o Governo de ter uma "visão estatizante e centralista" da forma de gerir o SNS, apesar de estar "mais próximo" do que defende o seu partido, enquanto Mariana Mortágua instou o ministro a "decidir se está ao lado de Luís Montenegro" ou "se está ao lado do SNS".
"Não temos nenhuma obsessão ideológica que nos impeça de recorrer ao setor privado quando isso é adequado e também não temos nenhuma obsessão ideológica para diminuir ou amesquinhar o setor público e reconhecemos a importância que o SNS teve ao longo destas décadas", atirou Manuel Pizarro, no Hospital de Beja, onde fez o balanço do dia passado no distrito no âmbito da iniciativa Saúde Aberta.
Para contextualizar a afirmação, Pizarro frisou que está "do lado das pessoas" e que apenas pretende "assegurar que Portugal continua a ser um excelente país para se engravidar" e proteger a saúde das futuras mães, "como o SNS garantiu nestes quase 50 anos de democracia".
"Para o fazer temos de fortalecer os serviços públicos do SNS. Aliás, é isso que estamos a fazer em Santa Maria. Porque o que vamos fazer é uma remodelação profunda do bloco de partos que vai transformá-lo no mais moderno e no maior bloco de partos do país", destacou o governante.
Questionado, também, sobre a intenção anunciada pela Ordem dos Médicos de enviar um colégio da especialidade para perceber se estão garantidas as condições de segurança no serviço de obstetrícia do Hospital de Santa Maria, o ministro assumiu que "todos os contributos de diferentes instituições são bem-vindos". Há quem não goste, mas costumo olhar para passado para tentar entender o presente. Em 3 de Julho de 2004, estava já assumido que Durão Barroso ia para a presidência da Comissão Europeia.
O PSD entendeu ter legitimidade para nomear o novo primeiro-ministro, tudo com a conivência e, a bem, da estabilidade política no país e do próprio Jorge Sampaio. O que aconteceu. Para a sucessão foi escolhido Santana Lopes.
Nos dois anos que governou Durão Barroso iniciou a gestão privada de hospitais públicos de uma forma abrangente, vulgarmente conhecida como Hospitais S.A.
Na altura, mesmo quem era a favor da gestão privada e tenha reconhecido mérito nos resultados obtidos por esta medida, reconhecia ao mesmo tempo, que a dívida às farmácias e hospitais ascendia a 700 milhões de euros, com acréscimo no ano de 2003 de 87 %.
Por pressão dos lobbies, Durão Barroso resistiu à introdução dos genéricos de uma forma massiva, e até admitiu a hipótese que a auto-medicação pouparia ao Estado cerca de 10% dos custos.
Na altura, existiam muitas questões no ar, nomeadamente ficou por responder se o SNS - como serviço público, com tratamento constitucional, devia prevalecer, ou não, sobre os interesses das autoridades investidas ou travestidas de neutralidade e de eficiência técnica e social.
Com a entrega, sistemática e sempre crescente, de serviços de saúde a "entidades administrativas independentes", o Estado (a Administração da Saúde) apenas passou a desempenhar uma função reguladora - Estado mínimo regulador - abdicando de realizar actividades que lhe estavam primacialmente incumbidas, de forma a promover e garantir o direito à protecção da saúde.
A resposta a esta questão passou por um longo caminho que, estamos a sentir agora, não contribuiu para termos um sistema de saúde transversal e eficiente.
O que aconteceu com a esta transmissão de direitos - a transformação da natureza jurídica de alguns dos hospitais em sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos, pretendia alcançar uma crescente autonomia de gestão dos hospitais, em moldes mais próximos da realidade empresarial, estabelecendo-se simultaneamente a separação da função de prestador de cuidados de saúde da função de financiador público do Serviço Nacional de Saúde, ficando assegurado o carácter geral, universal e tendencialmente gratuito do Serviço Nacional de Saúde.
Hoje estamos numa encruzilhada que não augura nada de bom.
O hospital público é uma empresa?
O hospital público presta um serviço público às populações?
O hospital público vai desaparecer e dar lugar a instituições de outra natureza?
O cidadão (ou melhor: o doente, colocado no centro dos discursos) esteve no centro do debate e no centro das decisões?
A partir de Durão Barroso o hospital passou a ser encarado uma empresa como qualquer outra empresa, pelo menos em muitos aspectos, devendo, portanto, recorrer aos métodos, técnicas e instrumentos próprios da gestão empresarial.
A legislação desta Reforma falava em ganhos em saúde: isto não era aproximar-se da essência e da finalidade de uma empresa?
Isto é: o lucro.
Aconteceu o que tinha que acontecer: os gestores dos hospitais, transformados em sociedades anónimas, os dirigentes dos que continuaram a pertencer ao Sector Público Administrativo, ou dos que forem objecto de negociações do tipo parceria público-privada, procuraram conquistar determinados mercados para que a sua "empresa" obtivesse "ganhos".
E como ficámos nós os utentes perante esta nova realidade?
Convém não esquecer que o que está em causa é um produto que podemos chamar de saúde. O povo diz que a saúde não tem preço. É uma realidade. Para o doente/utente - sei por experência própria - no momento em que está a precisar de cuidados de saúde, aquilo que menos o preocupa é se o hospital tem gestão empresarial ou gestão tradicional. O que doente/utente pretende é ser bem atendido e não esperar meses a fio por uma consulta ou por uma intervenção cirúrgica sem recorrer aos subsistemas privados de saúde.
Sabemos quem assume o tratamento dos doentes mais caros: o SNS, que o mesmo é dizer, o orçamento de estado para a saúde.
Os hospitais S.A., foram considerados há 20 anos uma lufada de ar fresco na saúde em Portugal, em termos de custos e em termos de operacionalidade, mas ninguém se preocupou em quanto isso aumentou o custo para o utente e para o SNS.
Ficaram com a "carne". Por exemplo, um doente com uma operação delicada que demore 6 horas ocupa um bloco operatório durante 8 a 10 horas. Ao desviar esse doente para o SNS, o mesmo bloco fica livre para nas mesmas 10 horas se efectuarem, 8 a 10 intervenções ligeiras. E assim se conseguiram alguns números.
Depois de Durão Barroso Portugal continuou com governos do Partido Social-Democrata e do Partido Socialista, chefiados por Santana Lopes, António Guterres, José Sócrates, Passos Coelho/Paulo Portas e António Costa.
Apesar de António Costa encher a boca com o SNS, o seu primeiro ministro das Finanças, Mário Centeno, revelou menos carinho e disponibilidade.
E aconteceu a pandemia e uma negociação curiosa: a determinação do preço por doente Covid, que o SNS teve de pagar ao sector privado da Saúde.
Esse "negócio" permitiu ultrapassar o incomodo sofrido pelo sector privado da Saúde, quando, em Março de 2020, decidiu fechar as portas aos doentes Covid (por serem caros demais). Um vexame que transbordou para os partidos à direita no Parlamento, que se mostraram incapazes de justificar o injustificável, se não com o facto de o sector privado não querer perder dinheiro, revelando uma total falta de responsabilidade social.
O silêncio à direita, porém, deu lugar a outra táctica.
Primeiro, pediu-se um reforço de verbas para o SNS, colando-se às críticas à esquerda sobre os esforços orçamentais insuficientes (devido à política de contenção orçamental do ministro das Finanças). Depois, sublinhou-se que o SNS não era capaz de dar conta do recado, havendo urgência em contratar o sector privado para fazer o papel do SNS.
E de uma penada, o problema inicial do sector privado ficou resolvido.
Para quem está atento (infelizmente poucos), tornou-se ainda mais descarada a distância que vai entre as designações programáticas dos partidos, as afirmações fáceis de campanha e aquilo que se passa na realidade governativa.