Esta foi a história que
contei aos meus filhos
ontem à noite: “Era
uma vez, num reino
distante, um rei que
tinha medo do seu
povo. A verdade é que este rei era
tão medroso que a única forma de
se sentir seguro no trono era
controlando tudo o que as pessoas
faziam e diziam. Como não o podia
fazer sozinho (afinal ele era só um),
um dia decidiu chamar os seus
soldados mais fiéis e, com a sua
ajuda, criou uma polícia que servia
para vigiar os seus súbditos. Essa
polícia espalhou-se por todo o lado
e passou a registar tudo o que via
para depois contar ao rei. Às vezes,
essa polícia descobria coisas
importantes, mas, na maior parte
do tempo, tudo o que fazia era
denunciar, prender e torturar
quem criticasse o seu soberano.
Mas conseguem adivinhar o que
é que assustava mais o rei dessa
nação longínqua? Não eram armas
ou pessoas zangadas. O que ele
temia, com todas as suas forças,
era o conhecimento. Porque ele
sabia que o conhecimento era o
único alicate que poderia cortar as
amarras invisíveis do medo com
que ele mantinha preso o seu povo.
E foi por isso que o rei proibiu
muitos livros e muitas canções. No
reino da nossa história, o povo só
podia ler e ouvir as músicas que o
rei escolhia. Era um reino muito
triste e cinzento, sabem?
Além disso, o rei era também
muito injusto. Imaginem que
houve um dia em que mandou
prender um menino muito pobre
que, cheio de fome, subiu a uma
árvore para apanhar maçãs. Como
a macieira estava dentro do quintal
de uma casa muito rica, mesmo
que perto do muro, a polícia levou
o menino e deixou-o uma noite
sem comer numa cela fria. E este
menino não era o único com fome,
nada disso. O reino estava cheio de
pessoas tão pobres que, muitas
vezes, nem tinham dinheiro para
comer. Na casa do menino das
maçãs, sempre que havia peixe,
uma sardinha tinha de ser dividida
entre duas pessoas, imaginem. E
na maioria das noites tudo o que
comiam era um caldo de couve
com pão que os fazia deitar com a
barriga ainda a roncar de fome.
Os meninos também iam muito
pouco à escola porque tinham de
começar a trabalhar cedo para
ajudar os pais. Muitos deles nunca
sequer aprendiam a ler e a
escrever. Mas enquanto o povo
vivia com fome, os cofres do reino
estavam repletos de ouro e
algumas das poucas pessoas ricas
do país achavam que esse ouro,
trancado no palácio real e do qual
o rei muito se orgulhava, era mais
importante do que dar ao povo
condições de vida dignas.
As pessoas viviam
infelizes e
descontentes. O rei,
algumas vezes,
tentava distraí-las do
seu
descontentamento e entretinha-as
com o futebol, com a missa e com
alguns programas de televisão e
rádio que ele próprio escolhia. Mas
as pessoas queriam mais e estavam
demasiado cansadas. Para além da
fome, da pobreza, das más
condições de habitação e dos
fracos cuidados de saúde, toda a
gente estava cansada de não ser
livre. E, apesar de ninguém poder
gritar, o burburinho foi
aumentando.
Até que um dia, cansado da vida
difícil de todos, um grupo de
soldados decidiu criar um plano
para mandar embora o rei e para
devolver ao povo a liberdade. E
sem o rei imaginar, fazendo tudo
no maior segredo, num dia como o
de amanhã, 25 de Abril, usando
canções como sinal (sendo que
uma delas tinha até sido proibida
pelo rei), estes soldados
conseguiram o que antes parecia
impossível. O rei, quando viu
tantos soldados, percebeu que não
podia fazer nada e fugiu para outro
país. Já o povo ficou tão feliz por
ser finalmente livre que encheu as
ruas com centenas de cravos
vermelhos.
O reino longínquo mudou muito
depois desse dia. Não se tornou
um reino perfeito, é claro. Mas,
apesar de alguma turbulência
inicial, aos poucos tudo melhorou
e a pobreza tornou-se menos
marcada, havia menos
barriguinhas a roncar com fome à
noite, mais meninos nas escolas e
casas melhores e mais dignas.
Também se construíram hospitais,
mais gente chegou às
universidades e cada um passou a
ouvir a música que mais gostava e
a ler os livros que mais lhe
interessavam sem ter ninguém a
proibir.
Às vezes, muito de vez em
quando, alguém falava no velho
rei. E quando alguns mostravam
saudades desses tempos cinzentos
para a maioria, o menino das
maçãs que, entretanto, se tinha
tornado um homem, acertava-lhes
com um livro na tola e mandava-os
ter juízo. No que dependesse dele,
não voltaria à sua terra um rei de
tão má índole. Ele sabia bem quão
doloroso era viver em ditadura e
jurou que falaria sempre aos seus
sobre a importância da liberdade.”
E depois, quando eles
adormeceram e os vi tão perfeitos,
tranquilos e amados, parei uns
minutos para pensar no menino
das maçãs desta história. Hoje,
com dois e quatro anos, o João e o
Pedro são demasiado pequenos
para compreenderem que nunca
existiu um rei, que o reino distante
é o país onde nasceram e vivem e
que o menino das maçãs é tão real
que eu ainda carrego o apelido
dele. Mas daqui por alguns anos,
num 25 de Abril como o de hoje,
vou contar-lhes que esse menino,
na verdade, se chamava Manuel e
era o bisavô deles. O bisavô de
olhos muito azuis e pele tão clara
que parecia transparente. O bisavô
que ficava ofendido quando,
inocentemente, algum neto dizia
“tenho fome” porque isso era
quase uma blasfémia. Sabíamos lá
nós o que era fome, dizia. Mas ele
sabia, soube durante demasiados
anos. Ele que comia os caldos de
couve, que bebia água para encher
a barriga e que se acostumou
tanto às dores no estômago que a
fome provocava que já as tratava
quase como amigas. O bisavô
Manuel que não sabia ler nem
escrever e que olhava para os bifes
de vaca no prato com o mesmo ar
de encantamento com que eu
olhei pela primeira vez o tecto da
Capela Sistina. O bisavô que todos
os anos, enquanto as pernas o
deixaram, descia a rua até à
Boavista para ver desfilar os carros
da câmara enfeitados de cravos e
que no 1.º de Maio nem a horta
regava por ver nele um dia
sagrado.
Um dia, no alto da
minha inocência dos
11 anos e depois de
uma aula em que
falámos no assunto,
perguntei-lhe se era
comunista. E ele olhou para mim
muito sério, deu-me um calduço
com aquelas mãos enormes que
tinha e respondeu-me que essas
coisas não interessavam para nada.
Porque o partido dele, dizia-me,
era a liberdade.
E essa foi a minha herança
política. O menino que foi
castigado por subir a uma árvore e
apanhar maçãs foi o avô que me
ensinou que, custe o que custar, o
mais importante é sermos livres.
Como a gaivota, a papoila ou o
menino que não queria combater.
E essa é a lição que quero
transmitir e a herança que
pretendo deixar a estes dois
pequeninos que se entregaram
sem medo nos braços de
Morpheu.
As cores partidárias na nossa
família pouco importam e o nosso
voto não tem nem nunca teve
militância. Agora que penso nisso,
acho até que nunca votei duas
vezes seguidas no mesmo partido.
Mas votei sempre em liberdade.
Porque é aí, e só aí, que militam os
descendentes do menino das
maçãs. Na liberdade. Sempre na
liberdade. Pela liberdade sempre.