Por João Paulo Batalha |
Rebentou como grande escândalo, morreu como nota de rodapé. O caso Galpgate anunciava-se como o primeiro grande processo por crime de recebimento indevido de vantagem, previsto na lei desde 2010 mas sem condenações conhecidas até hoje – um modelo de eficácia no combate ao abuso, portanto.
Os factos eram conhecidos: um conjunto de decisores políticos, incluindo três secretários de Estado, aceitaram viagens pagas pela Galp para verem jogos da seleção nacional de futebol no Euro2016, em França. Apanhados, Galp e Governo reagiram com a mesma singeleza: não sabiam que não se podia – uma variante da famosa doutrina "é proibido mas pode-se fazer". Os secretários de Estado demitiram-se protestando cabalas, o Governo apressou-se a redigir um código de conduta que foi de imediato depositado na mais funda gaveta da Presidência do Conselho de Ministros e a Galp insistiu que não pretendeu com os convites obter qualquer contrapartida. Era só uma atençãozinha.
Sucede que a atençãozinha é uma violação clara da lei de crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos que diz, preto no branco, que «O titular de cargo político ou de alto cargo público que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos» - Artigo 19º, nº 1 da Lei 34/87, de 16 de Julho.
Este crime foi inscrito na lei em 2010 precisamente para se distinguir da corrupção, crime em que é preciso provar todo o circuito de favores, dinheiro e benefícios traficados, demonstrando quem deu o quê a quem, quando, em troca de que ação ou omissão. A alteração de há dez anos criava um crime de prova fácil – basta demonstrar que um político recebeu uma benesse que não lhe teria sido oferecida se não tivesse o cargo. Lei rija e máscula, para que nenhum político se atreva a pôr o pé em ramo verde.
Era então de esperar uma enxurrada de condenações na última década, que iniciasse uma avalancha de boas práticas e pudor na relação entre servidores públicos e interesses privados. Pois bem, essas condenações, onde estão? O Galpgate explica: depois de aturadas investigações foi o próprio Ministério Público a pedir a suspensão provisória do processo mediante o pagamento de umas multas. O ano passado ainda a juíza de instrução Cláudia Pina recusou o negócio e mandou o caso seguir para julgamento. Justificou, e bem: "A gravidade dos factos e a lesão que os mesmos causam à credibilidade das instituições democráticas é notória para um cidadão médio". E isso, explicou, não se resolve com umas multas, pagáveis aliás em suaves prestações mensais.
Entretanto, os arguidos pediram a abertura da instrução e o novo juiz aceitou o pedido original para encerrar o processo. Duas subsidiárias da Galp pagam 50 mil euros (umas migalhas do seu orçamento de lóbi e simpatias, sobretudo se comparados com os 100 milhões de litígio fiscal que a empresa tinha à data com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que levou a passar) e os restantes arguidos vão para casa com multas entre os 600 e os dez mil euros. Pagam mais os empresários do que os políticos (o que calha bem, porque podem descontar no próximo bónus de desempenho) e está o caso arrumado.
Podemos ter as leis duras que quisermos. A cultura do poder não se muda por decreto – e no que toca aos crimes de colarinho branco, essa cultura de poder olha mais ao colarinho do que ao crime. Os menos penalizados no Galpgate acabam sendo os políticos que deviam ter tido mais discernimento e vergonha na cara – e cujo crime mais ofende a sociedade e mais deslegitima as instituições democráticas. Um grande dissuasor, portanto. E porque em Portugal nem sequer temos mecanismos de "plea bargaign" como nos EUA, o processo é arrumado sem admissão de culpa, sem cadastro, sem nada. Como na igreja medieval, o Estado vendeu a sua indulgência aos arguidos, que podem assim prosseguir os seus negócios de alma lavada.
No início da semana, na marcha das múmias que constitui a cerimónia de abertura do ano judicial, voltaram a mencionar-se (mas desta vez com jeitinho e diplomacia) mecanismos de direito premial e negociação de penas que permitissem no mínimo uma admissão de culpa num caso como este. O novo bastonário da Ordem dos Advogados, que dispensou o jeitinho e a diplomacia, vociferou que estes melhoramentos são uma ameaça ao Estado de Direito, contrários que são à tradição jurídica portuguesa. Pois são. A tradição jurídica portuguesa é a da impunidade."