«A maioria absoluta do Partido Socialista foi obtida com a perda de votação do BE e do PCP. (…)
Esses eleitores terão votado no PS. Fizeram-no na sequência de sondagens que anunciaram a grande proximidade entre PS e PSD e eventualmente um empate técnico. Em paralelo Rui Rio, que nunca tinha dito de forma inequívoca que não faria acordos com o Chega, admitiu, na fase final da campanha, a possibilidade de entendimento parlamentar. Estes eleitores – mais à esquerda que o PS e mesmo sabendo da importância, para o BE e para o PCP, destas eleições – não arriscaram.
A maioria absoluta obtida pelo PS não decorre, como tanto se diz, da análise que esses eleitores fizeram acerca das responsabilidades pela crise política criada por falta de consenso entre os partidos de esquerda. Quando a variável era essa, tudo estava incerto para o Partido Socialista. Ela foi possível sim na sequência das previsões apontadas pelas sondagens, uma vitória de Rui Rio era possível, em articulação com a possibilidade de governação de direita em entendimento com o Chega. Estes dois factores foram determinantes na expressiva vitória. (…)
Há entre os eleitores do Chega o ódio mais profundo à governação de António Costa e é anunciado propósito do partido o pôr termo à governação socialista. Muito bem: ajudaram a obter a maioria absoluta do governo que queriam derrubar. E repare-se que, ao mesmo tempo que favoreceram a vitória do PS, conseguiram a sua própria vitória. (…)
Quando os eleitores votam sob pressão, ou para evitar um perigo, podem estar a abdicar da escolha fundamental: a da força política que melhor defenderá aquilo em que acreditam ou os seus direitos. Mais, os eleitores estão a assinar uma dura sentença aos partidos mais à esquerda. As escolhas políticas devem ser feitas em liberdade e essa liberdade não vai existir enquanto o partido Chega estiver entre nós. Está a ser pedido aos eleitores que assumam responsabilidades que não são suas. Está a ser-lhes pedido que comemorem a sua derrota. O “sistema” mantém o partido “anti-sistema” como possibilidade de voto e a vida política agita-se à volta dessa possibilidade. Diziam que não passará. Mas tem vindo a passar e a fazer-se sentir.
O combate às desigualdades é condição do bem-estar colectivo e do próprio desenvolvimento económico. Não existe crescimento económico assente na miséria de tantas pessoas. O que se passou no domingo não são boas notícias para a urgência deste combate.
A esquerda, à exceção dos que insistem na arqueologia das culpas pela falta de acordo no Orçamento de Estado, desejava e bem a vitória de António Costa. Não acredito que desejasse uma maioria absoluta socialista. Certamente não desejavam que a representação parlamentar do BE e do PCP fosse praticamente dizimada.
Vamos então a essa parte dos resultados: será vantajoso para o país que estes partidos tenham uma representação parlamentar tão diminuta? A história recente ensina que não. Estes são os partidos com a vocação de, em qualquer circunstância, defender primeiro os interesses dos trabalhadores. A sua história é a da luta contra as desigualdades sociais. Não faz sentido, num cenário complexo para tantas famílias, que a voz dos mais desfavorecidas tenha sido assim penalizada. A estratégia não pode passar por baixar a guarda nesta frente. A governação do Partido Socialista, sem o diálogo com esta esquerda, perde valor.
De quem é a responsabilidade? Podemos continuar a insistir nas demissões dos líderes partidários e, à semelhança do que já havia sido feito aquando do desentendimento da esquerda, a atirar culpas. Fala-se especialmente na demissão de Catarina Martins. Vejo uma mulher consistente, incansável e perseverante na luta que trava. Uma líder firme. Não vejo que moral têm as pessoas, sobretudo as que não fazem parte do partido e que não votam nele, de exigir a sua demissão. Com menos intensidade fala-se da liderança do PCP e adivinham-se novos cenários. Serão todos bons; agora que se conhece melhor o João Oliveira, grande revelação nesta campanha para quem esteve atento. Mas dificilmente encontrarão um homem como Jerónimo de Sousa. Há ali uma verdade e uma dignidade que não são comuns. Comparar o Jerónimo com os restantes homens é como comparar uma biblioteca com uma edificação.
É uma boa altura para olhar para dentro e ponderarmos a nossa própria avaliação e as nossas próprias falhas, que são imensas. Parar de sindicar demissões. Já bastam bem os que, entre nós, se demitiram no domingo passado. E, claro, é altura de felicitar o novo governo, de desejar e exigir que faça um bom trabalho e que dialogue de facto com estes partidos. A geringonça nasceu da sua vontade, a maioria absoluta do seu sacrifício. O domingo foi sangrento.
É boa hora para refletir. Refletir sobre domingo; se fomos uma solução ou se fomos um problema. A música costuma ser boa companhia mesmo que seja uma que não se goste muito.»