Caro Sr. Primeiro-Ministro
Espero que se encontre bem.
Li a sua intervenção pública sobre os jornalistas e o jornalismo e, se me permite, vou abster-me de repetir o que disse e passar adiante, pois ambos sabemos do que estamos a falar.Antes de mais, saiba o seguinte: em matéria de autocrítica, diagnóstico e reflexão não há nenhum congresso do PSD que se compare aos dois últimos congressos de jornalistas. Pelo menos. É pena que nenhum dos assessores do seu governo, e há tantos ex-jornalistas entre eles, lhe tenha dito isso.
Se há profissionais obcecados com o que fazem e as condições em que o fazem somos nós.
Se há profissionais que esgravatam as próprias feridas – por vezes, em demasia – e discutem até à exaustão (e às vezes quase até ao confronto), somos nós.
Se há profissionais que procuram, no seu íntimo, as circunstâncias mais dignas de exercer um ofício que honre a República, mesmo quando tudo “arde”, somos nós.
Pode pedir os documentos e os vídeos, estão disponíveis. Talvez se espante sobre o rol de insatisfações, frustrações e erros próprios que admitimos. E depois ainda nos desunhamos a tentar que os governos nos ouçam, sem efeito.
De qualquer forma, tomara eu que o PSD tivesse feito a mesma barrela interna que o cavaquismo, por exemplo, merecia. Talvez hoje não houvesse um oráculo televisivo em figura de gente no primeiro lugar da sua lista de preferências para Belém. Um desses que caem sempre de pé e vêm do tempo em que a RTP pagava os Futres.
Mas os líderes passam e o esterco fica.
Por isso lhe digo: não precisamos que venham de fora dizer-nos como discutir, melhorar e fazer. Se levassem à séria uma pequena parte das nossas reivindicações, já era bom. E não me leve a mal: também podíamos dar conselhos sobre a forma como o PSD, ao longo de décadas, poderia ter prestado relevantes serviços à República nesta matéria. Só eu devo ter assistido a uns dez. Mas para os disparates não chegaria uma resma de moções.
Tenho respeito pelo seu ministro Pedro Duarte, a si não o conheço tão bem. E custa-me ver o seu ministro, no mínimo, desfocado do essencial, após tantas propostas que foram feitas, algumas das quais pelas estruturas representativas dos jornalistas.
Mas já que também é do seu partido, aproveite para trocar umas impressões com Miguel Poiares Maduro. Talvez lhe pudesse contar umas histórias sobre aquilo que a nata do capitalismo português pensa do jornalismo de investigação e de serviço público que alguns teimam em fazer, contra tudo e todos. Pergunte-lhe o que ele ouviu quando, há uns anos, reuniu à mesa os senhores das principais fundações privadas do País e lhes propôs apoios sérios para o jornalismo. Se calhar vai ficar surpreendido com o requinte das respostas dos mecenas nacionais, etc e tais. Depois admire-se que nos viremos para o Estado.
Vá, não me interprete mal. Olhe que não sou dado a corporativismos.
Muitos de nós são também bastante críticos de um certo jornalismo justiceiro, de certos cavaleiros andantes em horário nobre, daqueles, enfim, que tendo uma carteira profissional a usam, no quotidiano, contra tudo o que ela representa. Não são recomendáveis e, infelizmente, não são poucos. E se permanecem ao serviço isso diz muito mais sobre o ecossistema mediático e financeiro que a classe política alimenta e perpetua há muitos anos do que sobre os "podres” do ofício.
“Um jornalismo cão há de merecer um mundo cão”, escreveu Mário de Carvalho há décadas. E ainda estávamos bem longe deste “território comanche” onde abundam empresários instantâneos e de vão de escada que descobriram o filão de terem órgãos de informação. Como se pudessem – e alguns podem – fazer deles lavandarias dos seus próprios currículos (e dos amigos). Que, de resto, tresandam.
Por momentos, pensei que o senhor iria dedicar dois/três minutos da sua intervenção a esses “bons rapazes” ou que iria anunciar algumas medidas para que empresários de fancaria deixassem de ter a vida tão facilitada por estas bandas para se tornarem “donos disto tudo” na Imprensa.
Já olhou para o tipo de gente que hoje se acha no direito de frequentar uma redação e dar ordens? Já dedicou cinco dos seus preciosos minutos a tentar perceber o emaranhado de paraísos fiscais, de redes transnacionais e interesses subterrâneos que representam? Ou ainda não reparou nas mais recentes crises que abalaram grupos de comunicação social? Já pensou que foi o mercado, com rédea solta, que nos trouxe aqui? E, já agora: o que fez o PSD na Europa para contrariar a ditadura do Google y sus muchachos? Ou fica satisfeito com uma regulação fofinha, tipo filme da Disney?
Mas voltemos ao que disse sobre o jornalismo que se pratica.
Na verdade, doutor Montenegro, se bem me lembro, o próprio PSD, na oposição, já brindou e se embebedou com este jornalismo apressado, de “auricular” ou lá o que é. Ou estarei equivocado?
Se não fosse esse jornalismo dos diretos televisivos eternos e insanos, do jornalismo de corpo presente ou pé de microfone, dos casos e casinhos em pingue-pongue e servidos à saciedade com frases bombásticas, se não fosse, enfim, esse jornalismo da espuma dos dias, do fogo na pradaria, do comentário inflamado, no País onde um chefe de governo se demite por causa de um parágrafo misterioso, um ex-ministro pode ser filmado em pijama na rua a passear o cão e um líder parlamentar de taberna se ofende com o que não devia - e, ainda assim, passa 50 vezes na TV - poderia garantir, com toda a certeza, que teria chegado a primeiro-ministro?
Ai quer sossego, agora?
Desculpe, não me leve a mal, mas faz lembrar aquelas vedetas de telenovela ou certa aristocracia falida que adora aparecer nas capas das revistas do coração quando o sucesso, os barcos e os amores navegam de feição, mas se indignam com a invasão de privacidade quando tudo se desmorona. Lamento, mas o pior do jornalismo também lhe vai tocar a si. O que era refresco no governo dos outros agora é pimenta no seu.
Quanto ao bom jornalismo, continuará por aí. Com inquietação, inquietação, que é o que se pede a quem faz bem o seu trabalho.
Mas, se quer mesmo mudar algo, em vez de dirigir o seu (pouco) subtil ataque aos operários do jornalismo, talvez fosse de pegar no telefone – não censurava, digo-lhe – e chamar à pedra aqueles que, no topo da hierarquia, são os engenheiros e arquitetos da luta pelas audiências e entregam de mão beijada a agenda mediática aos tweets, à latrina das redes sociais e aos spin-doctors (há exceções, claro!) Não se esqueça daquele antigo diretor de canal e jornal que reconheceu o enorme contributo que o seu grupo de comunicação deu para criar um líder político entre a “rua segura” e o “pé em riste”. Deu-lhe palco, tempo de antena e criou um Frankenstein. Agora anda por aí e é um problema seu. E nosso.
Pense: acha mesmo que foram os jornalistas "bravos do pelotão", os que contabilizam mais horas de trabalho do que folgas, os que têm mais mês do que salário, os escravos do clique, “do que está a bombar” e da produção jornalística de fábrica têxtil que são os culpados deste ecossistema?!
Sabe, doutor Montenegro?
Durante uma década, pelo menos, recebi na redação onde trabalhava dezenas de alunos de jornalismo que me procuravam para um conselho, ajuda num trabalho ou entrevista para uma investigação académica. A esmagadora maioria era gente bem-intencionada, com os valores da profissão no sítio. E tinham um sonho: contribuir, através do jornalismo, para uma sociedade mais decente, uma democracia mais íntegra e poderes mais escrutinados. Em síntese: melhorar as nossas vidas. Sabe como acabaram? Sabe por que desistiram?
Era por aqui que deveriam ter começado as medidas que o seu governo estudou durante este tempo. Pela dignificação do ofício, das redações, do relevante serviço público que o jornalismo, a viver no osso, ainda presta à democracia, tão ameaçada em muitos lugares por estes dias. Mesmo que o Estado e os governos de turno não possam, como é óbvio, solucionar uma crise que é mundial.
Repare: o problema não é o Estado. É o estado a que chegámos.
E as suas medidas para a RTP não auguram nada de bom. O que fez foi apenas concretizar o eterno sonho húmido de alguns players (é assim que se diz, não é?) arrastando a empresa pública e os seus trabalhadores para um fim “amigável”. Amigável para quem, senhor primeiro-ministro?
Quanto ao financiamento público, fale com o Joaquim Fidalgo, meu camarada de ofício, fundador do Público. Talvez ele lhe possa fornecer os dados que apresentou no nosso último congresso. Dizem o seguinte: raro, na Europa, é não haver apoio estatal ao jornalismo. Há muitos modelos. É só escolher. Ou fazer um mix. Outra dica (mas não conte a ninguém): até há países, bem maiores do que o nosso, onde o financiamento sério a um bem público como o jornalismo não é motivo de controvérsia política, veja lá…
Acredite em mim: foi o sistema - não aquele de que fala o doutor em Direito que só sabe dizer “chega” e "vergonha" - que nos trouxe aqui.
Um modelo económico-financeiro falido, mas que repetimos, uma e outra vez.
Um modelo de sociedade que prefere gastar o pouco que tem em raspadinhas em vez de comprar um livro ou um jornal.
Um modelo de sociedade que vende a precariedade como liberdade e os direitos como arqueologia.
Um modelo de comunicação tik-tok que se excita com a raiva, a polémica, o horror, para vender horas de “informação” de forma tão pornográfica que até um telejornal deveria ter bolinha.
Este modelo, senhor primeiro-ministro, é que nos engaiolou.
Já não somos livres, na verdade. Somos alimentados, a horas certas, através da portinhola que daria acesso ao sonho, mas não temos a chave. O pesadelo vive-se por dentro das redações, das nossas vidas, dos nossos afazeres de ratinhos de laboratório, cobaias de novas experiências de sucesso, sempre votadas ao fracasso.
Querem-nos cada vez mais produtos de aviário.
Já não voamos, por vezes já nem nos mexemos e pedem-nos cada vez mais ovos. Os horizontes que nos prometeram e com que sonhamos - não mais do que viver dignamente e trabalhar com decência em nome de uma sociedade melhor, mais escrutinada e justa - já não estão ao nosso alcance.
Para que algum jornalismo que preza o seu nome ainda se faça por estes dias muitos de nós esfrangalham as suas vidas pessoais, amarrotam os melhores dias das suas existências, congelam a esperança, vão viver para longe ou espremem-se num quotidiano miserável. Move-nos uma missão impossível, um sentimento de pertença a algo que, para o cidadão comum, está em liquidação. Sim, é essa a palavra: liquidação.
Por isso, lamento dar-lhe a má notícia: tal como um jornal datado, aquilo que anunciou só servirá, quando muito, para embrulhar o peixe de amanhã.
Talvez os líderes passem e o jornalismo fique, que sei eu...
Resistir é o nosso nome do meio.
Às vezes escrevemo-lo em caixa alta ou fazemos um título com ele.
Mas se soubéssemos a força que temos, seríamos manchete.
E aí, parafraseando o velho Almada, talvez Portugal percebesse de vez, caso a sua cegueira não seja incurável, a necessidade que tem de ser, de uma vez por todas, “qualquer coisa de asseado”. Pim!
Com os melhores cumprimentos
Miguel Carvalho