Todos sabemos que o Papa gostava muito de futebol. Todos sabemos, também, que Abril já teve mais e melhor súde. Só não vê quem estiver em conflito com a realidade. Portanto, esta postagem de Ana Cruz, no mínimo, deveria fazer pensar.
Imagem: via Vieira Resurrected
«O cancelamento das comemorações oficiais do 25 de Abril em Portugal, devido à morte do Papa, é uma decisão que merece uma reflexão crítica e profunda. Não por desrespeito ao Papa – um homem de fé e defensor dos direitos humanos – mas precisamente porque a sua memória não deve silenciar uma data que simboliza, por excelência, a liberdade, a democracia e a conquista dos direitos fundamentais.
O 25 de Abril é o coração pulsante da nossa identidade democrática. É o dia em que celebramos o fim da ditadura, a conquista do direito à palavra, à escolha, à dignidade. Cancelar as comemorações desta data é, em si, um recuo perante os valores que nos definem enquanto povo livre. A morte de um líder espiritual com um legado tão alinhado com os ideais de Abril – a justiça social, a paz, a liberdade – deveria, aliás, reforçar a importância de assinalar esse dia. O Papa foi um defensor dos marginalizados, um crítico das opressões, um homem que, tal como o espírito do 25 de Abril, acreditava que um mundo mais justo é possível. Cancelar as celebrações em seu nome é, em meu entender, não compreender nem o seu exemplo, nem o significado profundo desta data para os portugueses.
Importa ainda esclarecer que o luto nacional não obriga legalmente ao cancelamento de comemorações oficiais. A Lei n.º 40/2006, de 25 de agosto, que regula as honras do Estado, prevê que o luto nacional seja decretado pelo Governo como expressão de pesar, mas não impõe a suspensão de eventos comemorativos. A aplicação do luto é uma decisão política e simbólica, não jurídica, cabendo ao Governo decidir como se expressa o respeito institucional, mas com liberdade de forma e conteúdo. Assim, a suspensão das celebrações do 25 de Abril não era uma imposição legal, mas sim uma escolha consciente – e politicamente questionável.
Veja-se o exemplo recente da Catalunha, onde o Dia de Sant Jordi (23.04.2025) – data igualmente simbólica de identidade cultural e defesa da liberdade através da literatura – foi respeitado, ainda que adaptado ao luto nacional espanhol.
Cancelaram-se os eventos mais festivos e lúdicos, mas mantiveram-se as atividades diretamente relacionadas com a promoção cultural e literária, isto é, a sua a essência: a celebração dos livros, das rosas, e daquilo que une as pessoas em torno de valores partilhados. Esta postura demonstra que é possível honrar a memória de um líder mundial sem sacrificar os pilares da nossa própria história.
Num tempo em que os valores democráticos são postos em causa por discursos autoritários e revisionistas, mais do que nunca, é essencial afirmar o 25 de Abril. Recordá-lo com força, com convicção, com orgulho. Porque a memória não se cancela. E a liberdade, essa, não se adia.»
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