"O que Costa fará a Temido", por Luís Osório
Está por fazer a história da pandemia.
O que se teve de mudar nos hospitais, os sacrifícios que se pediram em nome de um objetivo maior, a coragem política para enfrentar a tragédia que se adivinhava.
Houve momentos em que o mundo se pareceu desmoronar.
Tivemos medo, amigos partiram sem que nos pudéssemos despedir, vimos surtos de morte em lares e filas intermináveis de ambulâncias à porta de hospitais.
A ministra ganhou o seu lugar na história por ter enfrentado uma guerra. A estoica resistência de médicos, enfermeiros e auxiliares do Serviço Nacional de Saúde foi vista por uma parte substancial dos portugueses como fruto da sua própria resistência.
Por isso, António Costa teve uma maioria absoluta.
E é justo que se diga o que ainda ninguém disse: o primeiro-ministro deve uma parte da sua maioria absoluta a Marta Temido.
2.
Convenci-me de que a ministra continuaria no governo, mas noutra pasta. Teria sido prudente.
Mas António Costa decidiu mantê-la na Saúde e foi um erro crasso.
Alguém que pede sangue, suor e lágrimas durante a pandemia, não pode ser a mesma que pede mais sacrifícios, mais coragem e mais resistência aos profissionais do SNS para enfrentar uma reforma impossível de adiar.
Numa guerra fazem-se inimigos, destroem-se pontes, perde-se energia e ilusões. E Marta Temido bebeu o cálice da pandemia até à última gota.
3.
A tempestade perfeita dos últimos dias chocou de frente com esta evidência.
A página da pandemia tinha-se felizmente virado e o livro da Saúde voltara ao capítulo de sempre.
As pressões, o dinheiro que se ganha ou deixa de ganhar, as figas que muita gente faz para que tudo corra mal no SNS.
Afinal, quanto mais ineficaz for, mais parcerias com privados terão de ser feitas.
Quanto mais buracos existirem nos hospitais públicos mais a população procurará outras soluções.
Quanto maior for a confusão melhor será para os que diabolizam o setor público.
4.
Eis o paradoxo: apesar de António Costa ter cometido um erro de avaliação, não pode demitir Marta Temido, seria pior a emenda do que o soneto.
António Costa não o fará.
Não só não a demitirá como será a ministra a lançar as bases de uma reforma necessária. Lançará as bases, mas não poderá ser ela a concluir a missão.
Recapitulo então para que fique claro.
O primeiro-ministro apoiará Marta Temido.
A ministra da Saúde comprometer-se-á com os portugueses e apresentará dentro de uns meses o plano de reforma do governo.
Existirá oposição, polémica e confusão.
Mas António Costa ganhará tempo e no momento certo, provavelmente na primeira remodelação, Marta Temido será chamada a um outro lugar igualmente importante e um ministro fresco enfrentará a fogueira que se adivinha.
Um dia cá estaremos para saber se tenho razão."