Ontem, na Praia da Leirosa, o dia esteve magnífico para os pescadores de actividade da "xávega" inaugurarem a safra: sol, ausência de vento e "mar de senhoras". O nevoeiro apareceu, mas só depois do barco que lançou a rede ao mar ter chegado à praia...
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Foto António Agostinho |
A arte xávega é um dos mais antigos e característicos processos de pesca artesanal, em toda a faixa litoral.
Os seus elementos identificativos são inúmeros, começando pela embarcação – fundo chato, proa em bico elevado, decoração simples. Também a rede possui características próprias, sendo constituída pelo saco (onde se acumula o peixe) e pelas cordas, cuja extensão varia conforme a dimensão da rede e dos lances. A companha, variável, era, na generalidade composta por 8 homens: o arrais, à ré; 3 remadores no banco do meio, os "revezeiros", os que "vão de caras p´ró mar", 2 no banco da proa e outros tantos no "banco" sobre a coberta; embora esta disposição não fosse rígida, labutavam, tantas vezes estoicamente, num remar vigoroso e cadenciado, a caminho dos lances dos lances que lhe davam o sustento.
Noutros tempos, quando a pesca era sustento de muitas famílias, a chegada do saco a terra era saudada com entusiasmo, se vinha cheio (“aboiado”), ou com tristeza, se vinha vazio (“estremado”). O peixe era posteriormente tirado para os xalavares (tipo de cesto), a fim de se proceder à sua venda. A lota era na praia. A licitação do peixe era feita com o tradicional “chui” – sinal que o peixe foi arrematado pela melhor oferta.
A rede era, assim, lançada de acordo com os sinais de terra e mar, a cerca de 300 braças da praia e ocupando uma extensão de cerca de 200 metros de largura. Cada lance, tinha a duração de hora e meia para a permanência da rede na água, e meia hora para a alagem (puxar a rede). Na borda d’água, estavam os camaradas de terra, para o alar da rede. Com um ritual próprio, lento e cadenciado, dois “cordões humanos” puxavam as cordas dos dois lados – mão esquerda agarrada à corda junto ao pescoço, braço direito estendido.
Agora tudo é diferente e menos penoso.
Os remos, que davam andamento ao barco, foram substituídos pelo motor fora de borda.. No areal, as redes vão sendo recolhidas com a ajuda de tractores. Antigamente este trabalho, penoso, estava reservado a junta de bois e aos homens.
A Arte de Pesca de Arrasto para Terra, modernamente designada legalmente pelas instituições administrativas e fiscais do Estado português com o nome oficial de "Arte-Xávega", tem ainda vivos e em actividade no concelho da Figueira da Foz, três companhas activas: na Cova, na Costa de Lavos e na Leirosa.
Em condições por vezes bastante difíceis, o que não foi o caso de ontem, estes antigos homens do mar, tentam amealhar alguns cobres que lhes melhorem a parca reforma que obtiveram depois de uma vida longa de trabalho e de sacrifícios noutras pescas e noutros mares.
Citando o Professor Alfredo Pinheiro Marques, um grande defensor e lutador desta causa, “a Arte de Pesca de Arrasto para Terra é um tipo de pesca muito específico, muito especializado e bastante diferente (pois, na sua aparente simplicidade, é muito mais heroico e muito mais difícil e perigoso do que julgam os que nada sabem de mar), e que por isso não pode ser comparado com qualquer outro tipo de pesca praticada em qualquer outro litoral oceânico do mundo inteiro. É mesmo muito diferente, e muito mais impressionante, em coragem e em esforço, do que os próprios modelos originais mediterrânicos da “Xávega”, islâmica, andaluza e algarvia, que lhe estiveram na origem há muitos séculos atrás, mas que entretanto já se extinguiram (ao longo do século XX), e que já não existem hoje em dia (no século XXI). A Arte de Pesca de Arrasto para Terra, característica dos litorais portugueses da Ria de Aveiro e da Beira Litoral (hoje, legalmente, dita “Arte-Xávega”), é uma arte que nos nossos dias ainda continua a ser praticada por muitas centenas de homens e mulheres, desde as praias de Espinho até à Praia da Vieira de Leiria, e actualmente com o coração na Praia de Mira (depois de, outrora, ter irradiado sobretudo a partir das praias do Furadouro, Torreira e Ílhavo), e é uma das realidades mais impressionantes, mais autênticas e mais simbólicas — e, por isso, mais importantes — daquilo que continua a ser, ainda hoje, Portugal: um país dividido entre o Passado e o Futuro, um país sempre adiado, e sempre sem conseguir descobrir o seu caminho, entre a tradição que não consegue manter e a modernidade que não consegue construir. Um país sempre mergulhado no seu subdesenvolvimento secular e na sua insustentabilidade económica. Mas que, nem por isso, pode ou deve sacrificar os mais autênticos e verdadeiros exemplos da sua identidade nacional e da sua cultura secular em nome de quaisquer cegas burocracias estatais normalizadoras, ou de quaisquer imbecis aculturações televisivas, ou de quaisquer bizantinismos “culturais” “modernizadores”, ignorantes das verdadeiras tradições e identidades locais.”