A carreira política de Soares é única e incomparável: encabeçou a candidatura a 11 actos eleitorais, dos quais venceu seis (constituintes de 1975, legislativas de 1976 e 1983, presidenciais de 1986 e 1991 e europeias de 1999) e perdeu cinco (legislativas de 1969, 1979, 1980 e 1985 e presidenciais de 2006).
Mário Soares teve um percurso político que foi, digamos assim, pragmático: "foi comunista antes de ser anticomunista, foi contra a NATO antes de subscrever a Carta do Atlântico, foi defensor da nacionalização de sectores económicos estratégicos antes de condenar a sua execução, foi aliado da administração norte-americana antes de se tornar adversário de Washington, foi contra governos de iniciativa presidencial antes de advogar um executivo de salvação nacional promovido por Belém, foi contra a dissolução do parlamento e a convocação de eleições legislativas antes de rejeitar a procura no hemiciclo de uma solução governativa e, pelo contrário, dissolver a Assembleia da República e convocar eleições, foi o introdutor em Portugal de dois pacotes de austeridade antes de tomar posição contra um terceiro, foi pró-ocidental antes de desfilar ao lado de companhias altermundialistas, foi o homem público reformado que prometeu não regressar à política activa meses antes de se apresentar como candidato presidencial".
Sabendo-se, como se sabe, o lugar que Mário Soares ocupa na História de Portugal, uma homenagem promovida por iniciativa de um Presidente de Câmara da Figueira da Foz, merece especial atenção de quem vive e sente a Figueira.
Temos um ano pela frente.
Santana Lopes tem muito a ver com Mário Soares.
Vejo em ambos algo em comum: a capacidade de chegar aos eleitores, mais pela sua maneira de ser do que pela ideologia. E, ao mesmo tempo, pelo menos em determinado períodos - nomeadamente, eleições - serem capazes de mostrarem uma moderação e um equilíbrio que sensibeliza os votantes quando têm de escolher.
Mário Soares no País. Santana Lopes, sobretudo na Figueira.
A definição de Liberdade, enquanto grau de independência legítimo que um cidadão, um povo ou uma nação elege como valor supremo e como ideal, bem como a condição de não submissão a qualquer força constrangedora, física ou moral, remete-nos para a obra de Agostinho da Silva, que nos fala da missão de Portugal: "libertar-se e libertar o mundo, cumprindo-se, assim, na sua identidade universal e fraterna."
Todavia, Liberdade é, igualmente, a possibilidade que um indivíduo tem de se exprimir de acordo com a sua vontade, a sua consciência e a sua natureza.
Daí que Agostinho da Silva "apele ao não conformismo e ao pensamento próprio e proponha uma reflexão aprofundada sobre a importância da liberdade". Isto é: "fazer coincidir o pensar com o ser."
Agostinho da Silva ensinou (a quem quis aprender) "que a utopia não é o impossível, mas somente aquilo que ainda ninguém conseguiu fazer."
Num mundo sufocado pelos actuais modelos económicos, políticos e sociais, baseados no lucro e na concorrência selvagem, quer sejam vividos em democracias ou autocracias, para alguns existe a consciência da limitação de liberdade.
Numa sociedade em que se vive oprimido por diversos constrangimentos e os direitos de cada de cada um de nós são reprimidos, Agostinho da Silva sublinhava: «não basta para ser livre, que se tenha liberdade política. A liberdade política é perfeitamente ilusória enquanto se não tem liberdade económica».
Agostinho da Silva foi um homem muito à frente do seu e não era ingénuo. Sabia dos riscos que se corriam, já que ao mesmo tempo que se cria tecnologia, se pode fazer com ela coisas terríveis para a humanidade.
Nunca deixou de reforçar a ideia: «o caminho é o de pegar na máquina e pô-la ao serviço, não de uma nova escravidão, mas dos homens. Meter homens a servir as máquinas e com essas máquinas e com esses homens servir outros homens e outras máquinas, mas para efectivamente nos dar a tal liberdade de ser poeta à solta».
Mário Soares foi um “cidadão do mundo, e no mundo era conhecido como um líder marcante, democrata e socialista”.
Por conseguinte, foi um cidadão poderoso. E o que fez com o Poder?
Continuando a citar Agostinho da Silva.
«Vamos ver como é isso da entrada de Portugal na CEE. Se é um bebé que se vai acolher nas mãos de uma ama ou se é, pelo contrário, alguém, a Península, que vai dizer à Europa como é que ela se tem de humanizar».
A União Europeia foi pelo caminho do federalismo criado apenas numa base utilitarista e economicista. Daí a fragilidade da sua construção, o presente difícil e o futuro desconhecido.
Vivemos num mundo obcecado com a produtividade, a eficiência e os lucros. Perdeu-se em humanização e em liberdade cultural de cada um de nós.
Nos últimos anos de vida, dizem que "Mário Soares radicalizou à esquerda".
O PS, em 25 de Abril de 1974, "intitulava-se um partido à esquerda".
Todavia, nunca houve politicamente uma “maioria de esquerda”, apesar de ela existir aritmeticamente, nem houve qualquer tipo de entendimento à esquerda minimamente durável. Houve sim uma coligação com o CDS, o único que não votou favoravelmente a Constituição.
Porquê? Porque o PS de Mário Soares tinha uma estratégia muito clara da qual não nunca se afastou um milímetro: institucionalizar em Portugal uma democracia representativa, se possível de base exclusivamente parlamentar, sem qualquer tipo de cedências a qualquer outra forma de poder que não a resultante do voto popular.
«Mário Soares seguiu à risca esta estratégia, fazendo as alianças de ocasião que lhe pareceram as necessárias para a consolidar e recusando, sem problemas de consciências ou hesitações, qualquer tipo de entendimento à esquerda.
Mário Soares acreditava na solidariedade dos partidos socialistas e social-democratas europeus, acreditava no “socialismo em liberdade” e acreditava acima de tudo na Europa como palco ideal de concretização das suas ideias políticas. E continuou a acreditar, nos anos imediatamente subsequentes à Queda do Muro e à desagregação da URSS, que estavam, finalmente, reunidas as condições ideais para pôr em prática aquele ambicioso projecto político.»
Aliás, "é bom que se recorde que não foi sob o comando executivo de Soares à frente do PS que a organização económica consagrada na Constituição Portuguesa foi revista e completamente descaracterizada, mesmo tendo em conta a Lei n.º 77/77. Soares patrocinou e promoveu, juntamente com o PSD, a revisão de 1982, que no essencial consagrou aquilo que fora a sua estratégia politica depois do 25 de Abril. Mas foi com a revisão de 1989, promovida pelo cavaquismo com o apoio do PS de Constâncio que se abriu à porta às privatizações e tudo o mais que elas trouxeram. Cumprida a tarefa, Constâncio demitiu-se de secretário-geral do PS por divergências insanáveis com a família Soares, na altura centradas em João Soares."
“Portugal teve a sorte de, a seguir ao 25 de Abril de 1974, ter um homem com a visão política e o conhecimento do mundo de Mário Soares”.
Mas, para o Povo português em geral, em 2023, para que serviu isso?
Somos livres? Vivemos com confiança no futuro? Somos felizes?
Para o bem e para o mal, a carreira política de Mário Soares foi única e incomparável. A tal ponto que, como ele próprio confessou, deu para perder muitas outras coisas.
“Lembro-me que, uma vez, ainda vivia na casa da Rua Gomes Freire, teria, talvez, seis anos, fiquei estranhamente seduzido pelas pernas de uma garota de doze ou treze, filha da nossa mulher-a-dias. Comecei subitamente a acariciar-lhe as pernas e levei logo uma bofetada. Foi, que me recorde, a primeira manifestação de um interesse que, mais tarde, se manifestaria com força. Sempre fui particularmente sensível aos encantos femininos: as pernas, os cabelos, a voz, os olhos. Às vezes, quando estava já metido na política, num elétrico ou num cinema, via uma mulher que me agradava e perguntava a mim próprio: que ando eu a fazer nesta vida, a tentar salvar o mundo, desperdiçando oportunidades tão mais interessantes? (…)”