terça-feira, 5 de novembro de 2024

Um sítio como outro qualquer

Para lá da nossa cidade, não há cidadão ou Constituição 

«Ficámos chocados ao ouvir um deputado defender a condecoração de um polícia, só porque matou um cidadão. Por ouvir outro dizer que o País estaria melhor se a polícia atirasse mais a matar. Fui um dos que ajudou a fazer nascer uma queixa-crime contra dois dirigentes partidários. Mas esta é, infelizmente, apenas a imagem mais agressiva e caricatural da nossa violência social. No dia seguinte ao nosso choque a vida destes bairros continuou. Como, para além de umas tertúlias mediáticas, o país não pretende fazer qualquer reflexão séria sobre a violência policial, estes bairros ou o racismo, essa vida continuará ainda pior do que antes.

O dia seguinte já começou a ser contado por António Brito Guterres, que tem servido de porta-voz, porque nos traz a voz de quem não tem direito a ela: assessores municipais ameaçam retirar financiamento a associações que participam em protestos democráticos e pacíficos, há assédio de polícias e as carreiras de autocarros que servem bairros inteiros foram suprimidas, deixando-os coletivamente isolados. 
Ao Expresso, um psicólogo que dirige a Academia Johnson conta que, há uma semana, apareceram oito polícias de shotguns num jogo de futsal numa escola local e pressionaram o árbitro para apresentar cartão amarelo a um jogador que celebrou um golo exibindo uma t-shirt patrocinada para UEFA onde se lê "No to racism", a que acrescentou o nome de Odair Moniz. A arbitrariedade é absoluta e suspeito que será ainda maior quando as televisões abandonarem definitivamente o tema – é sempre tão rápido. A invisibilidade é a maior aliada da arbitrariedade.

Como sabemos, o presidente da Câmara Municipal de Loures, líder recém-eleito da Federação de Lisboa do PS, aprovou uma recomendação do Chega para despejar quem seja condenado em tribunal por ter participado em tumultos. Uma recomendação que viola várias vezes a lei e a Constituição da República: ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime, sanções acessórias só podem ser decididas pelo poder judicial e o castigo nunca pode ser para todo o agregado familiar – no despautério da última semana, descobri que há quem ache que os filhos são responsáveis pelos erros de pais. Uma pessoa pode ser despejada por violar as regras do uso da casa que ocupa ou por usá-la para cometer crimes (lenocínio ou tráfico de droga, por exemplo), não por cometer um crime fora dela.

Rui Rio, que assinou um manifesto contra os abusos da justiça e do Ministério Público, escreveu que acha isto muito bem. O Estado de Direito é para ele, para políticos, para empresários e para gestores. O mesmo homem que se indignou, e bem, com as buscas abusivas a sedes partidárias e à sua casa defende que autarquias sejam tribunais. Quando chega aos bairros mais pobres, desaparece tudo o que defende para quem tem poder. 

Indignei-me com a humilhação pública de Ricardo Salgado, mas descubro-me bem menos acompanhado (pelo menos na elite política e mediática) quando defendo o direito a uma justiça justa para quem mais precisa dela. 
Não estou, note-se, a escrever que não cometeram crimes e que não merecem punição. Estou a defender o Estado de Direito para todos. Uma Constituição para todos, veja-se bem. A começar, obviamente, pelos que mais facilmente são atropelados pela arbitrariedade do poder. Mesmo que sejam, como muito provavelmente é Ricardo Salgado, criminosos. 

Como se o meu espanto não pudesse descansar, vejo o jornal que me habituou a ser defensor intransigente da democracia e do Estado de Direito (ainda antes das duas coisas serem realidade neste país) a dar, nos tradicionais “altos e baixos”, nota positiva a Ricardo Leão. Escreve-se que as suas declarações, que corresponderam à aprovação de uma recomendação inconstitucional, “mesmo que feridas de ilegalidade, têm um fundo de justiça”. A ilegalidade é, portanto, um pormenor. Para quem viva nestes bairros e cometa um crime, chega “um fundo de justiça”. A lei é para a cidade legitima, onde vivem os verdadeiros cidadãos que a Constituição protege. 

Tudo isto é mais simples de explicar do que parece porque é muito mais antigo do que julgamos. A fronteira da legalidade está na porta daqueles bairros. Muitos julgam que a lei não existe para quem lá vive. Mas, na realidade, ela não existe, ali, para a maioria dos que lá não entram. Há séculos que assim é: a cidadania acaba onde acaba a cidade. A nossa. O Chega chama aos que têm direito à cidade e à lei “portugueses de bem”. Nós, mais polidos, somos menos explícitos. Apenas nos esquecemos que os outros são cidadãos. 

É deste sentimento geral que nasce o abuso policial. É por isto ser assim que um polícia pensa mais tempo antes de tocar com um dedo num branco que fale bem e use gravata do que em disparar sobre Odair ou outro como ele. Este polícia não é pior do que nós. Nada disso. É, de certa fome, vítima do que esperamos dela. Apenas sabe que, aos olhos do País, não somos todos iguais. E que, por isso, as consequências do erro perante uns e outros serão diferentes. Apenas suja as mãos para responder ao nosso classismo, servindo-o. 

NOTA: Pensei escrever sobre deputados que desrespeitaram, brincaram ou fizeram política com a morte do pai de duas pessoas com quem dividem o local de trabalho. Intriga-me como conseguirão voltar hoje ao Parlamento, tendo de se cruzar com elas, e não baixar a cabeça de vergonha. Depois desisti. Sou comentador político e o problema destas pessoas não é político. É serem, como seres humanos, uma miséria. Não merecem o nosso tempo.»

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