«A disciplina de Cidadania tem ideologia? Não é outra coisa do princípio ao fim. Das questões de género aos direitos humanos e aos princípios constitucionais, tudo é ideologia. Querer tirar da disciplina a parte relativa às questões sexuais e da identidade de género é ideologia.
A antiga ministra da Saúde, ao colocar o serviço público acima do sector privado, actuou por motivos ideológicos? Sim. Os que a criticaram por isso, defendendo que parte dos recursos que o Estado recebe dos contribuintes vá para o sector privado da saúde, têm ideologia? Têm. Os que, nos actuais conflitos nos bairros periféricos, defendem a outrance as polícias têm ideologia? Têm. Os que, pelo contrário, falam das condições socioeconómicas em que vivem os habitantes, num gueto no qual a cor da pele gera atitudes racistas e um mais fácil carregar no gatilho da polícia, têm ideologia? Têm. Os que acusam os “outros” de ter ideologia têm ideologia? Têm e não é pouca.
Não é por aqui que vamos a algum lado. Este tipo de acusações que implicam que “ter ideologia” menoriza o discurso ou as posições de alguém é uma consequência da diabolização da política que durante 48 anos fez a censura do Estado Novo. O que está implícito na acusação é que as soluções apresentadas “por ideologia” são más e que o que seria bom é que fossem apenas avaliadas por critérios tecnocráticos, o que, na prática, significa por outra ideologia. Pensar que, em democracia, a política (outra maneira de falar de ideologia) “suja” as decisões é essencialmente antidemocrático e é um argumento muito comum nas ditaduras, que se colocam acima da vulgaridade do confronto político por um qualquer princípio superior, de carácter nacional, social, de classe, ou… ideológico.
A referência que fiz à censura do Estado Novo e ao seu rastro, muitos anos depois de ter acabado, é objectiva, porque, naquela, a ideia da diferença é maldita, a favor do elogio do “consenso” como regra. Uma frase de Cavaco Silva (que cito de cor) traduz esta concepção: “Duas pessoas com a mesma informação chegam às mesmas conclusões.” Não é verdade. Há a tenebrosa ideologia, mas também as diferenças de experiência, os interesses, a proximidade com os temas, tudo aquilo que constitui a mundovisão pessoal ou de grupo.
Outra variante deste modo de pensar é a alusão de que uma determinada posição corresponde “aos superiores interesses da nação”, abundantemente utilizada quando da actual discussão do Orçamento. Na verdade, não há uma interpretação pacífica, tecnocrática, não ideológica, apolítica do que são esses “superiores interesses”. Esta e muitas outras frases comuns (demasiado comuns, porque são lugares-comuns) fazem parte do discurso político corrente, muito pobre aliás, e devem ser julgadas como volitivas ou de apropriação subjectiva ou colectiva de algo que se considera um “bem”, neste caso os “interesses nacionais”. Significa isso que o discurso político nas suas afirmações é puramente subjectivo e não comporta objectividade? Não, significa apenas que também em política a ideia de que os “prognósticos só se fazem no fim do jogo” é a mais prudente para as coisas mais gerais.
Os detractores da ideologia, no seu sentido comum, são aqueles cuja ideologia não pode ser enunciada, tem de permanecer escondida, porque isso significaria colocarem-se a si próprios como defensores de uma parte, que seria equivalente com a dos “outros”, e isso chamaria a atenção para a motivação em ideias, interesses, visões do mundo, que perderiam nessa revelação a superioridade de não serem espelhares, com as dos “outros”. O que eles pensam é “eu critico a ideologia porque a não tenho, o que eu digo transporta a superioridade política, técnica, de saber e neutralidade, desprovida de interesses, que os 'outros' não têm”. Embora não saibam, estão mais próximos da crítica de Marx aos sucessores de Hegel, que também considerava a ideologia uma visão “invertida” do mundo, alheia à “realidade” que ocultava a relação entre o mundo ideal e o mundo real. São apenas reaccionários à direita que atacam o “ter ideologia” como um mal? Este tipo de pensamento vai muito para além da direita, mas encontra-se também à esquerda, no PS por exemplo, com modo de pensar e frases absolutamente idênticas. Por favor, deixem-se destes lugares-comuns profundamente… ideológicos.»