sexta-feira, 8 de agosto de 2025

O tempo que passou e que parece esquecido

Os militares de Abril ofereceram-nos a Liberdade. Todavia, construir uma Democracia é muito mais do que Liberdade. Numa Democracia, os governantes são eleitos através de eleições justas e competitivas. Não há Democracia sem liberdades civis e direitos humanos.

A Democracia contrasta com formas de governo em que o poder não é investido na população geral, como acontece em sistemas autoritários.
Para ilustrar algo de que muitos ainda se recordam, publico uma breve passagem da edição municipal “O Dia de Todos os Sonhos do Mundo”, da autoria de António Agostinho, uma reflexão sobre a Revolução dos Cravos, a partir da experiência de vida do Autor, antes e depois de 1974, e insere-se nas comemorações dos 50 anos daquele “dia inicial inteiro e limpo”: A EXPLORAÇÃO DOS PESCADORES NO ESTADO NOVO.


Os armadores, com a protecção e a cumplicidade dos mandantes do regime corporativo, que beneficiavam e dominavam o comércio das pescas nacionais - alguns deles também eram proprietários de alguns desses navios - permitiam que as condições de vida a bordo dos navios de pesca, antes do 25 de Abril de 1974, fossem tão desiguais entre a tripulação, que é muito difícil ao cidadão comum aceitar, nos dias de hoje, esta diferenciação tão absurda e desumana. Enquanto que ao Comandante e restantes oficiais (incluindo especialidades ligadas às máquinas) as refeições diárias eram compostas por sopa, prato de peixe, prato de carne e fruta, aos pescadores era servido ao almoço e jantar apenas sopa e um único prato (geralmente peixe) tendo direito numa das refeições a um prato de carne apenas às quintas-feiras e domingos, composto por chispe com feijão ou carne salgada conservada em barricas de madeira. Aos camarotes dos primeiros (que exibiam alguma comodidade apesar da exiguidade do espaço) eram fornecidos pela Companhia Armadora os colchões, enquanto que aos pescadores era-lhes exigido que os trouxessem de casa, se quisessem ter comodidade mínima no fundo dos porões onde dormiam amontoados, convivendo de braço dado com a insalubridade. A remuneração era constituída por um salário mísero, que não era proporcional à extrema dureza do trabalho que efectuavam.
E, tudo isto, permitido e incentivado pelo regime do Estado Novo. Muitos, onde se inclui o Almirante Henrique Tenreiro, enriqueceram com a epopeia das pescas. Vivendo sempre à sombra dos privilégios que o regime lhes concedia, procuravam ostentar uma pose de beneméritos, quando no fundo se aproveitaram da extrema pobreza e das necessidades dos mais carenciados para fazerem deles os “eternamente agradecidos”, enquanto eles se auto intitulavam os “historicamente benfeitores”.


Sempre foi assim. E, em certos aspectos, continua assim. Continua a haver mandantes no Portugal Europeu e Democrático, pós 25 de Abril.
Para os que acreditam no que por aí se publica nos jornais, fica este texto de Miguel Szymanski.
"Fui dispensado de vários jornais por me recusar a fazer fretes. Na revista Sábado o director, na altura, hoje já reformado do jornalismo, veio ter comigo e disse "lamento mas és persona non grata junto da administração". O empresário André Jordan tinha-se queixado de uma entrevista que lhe fiz e que nunca foi publicada. No grupo do Diário Económico foi Ricardo Espírito Santo Salgado quem se queixou que eu o retratara "como se fosse um gatuno" e ameaçou retirar publicidade do grupo. "Não te posso dar mais trabalhos para escrever, lamento, ordens superiores", disse-me o director do jornal. Na revista GQ (onde publicava crónicas) as queixas vieram numa carta de Jardim Gonçalves. No último artigo que escrevi para o Expresso (o contrato como colaborador nunca foi rescindido) critiquei Sócrates quando ainda era primeiro-ministro. Recusei pedidos de artigos para a revista Up da TAP (sobre a EDP) porque eram fretes. A minha mulher foi despedida da Cofina por se recusar a escrever 'publi-reportagens', textos publicitários mascarados de jornalismo. A directora da revista exigia-o, ela insistiu em recusar-se e o director de recursos humanos, genro do patrão da Cofina, disse-lhe "o salário ao fim do mês também não vem com código deontológico". Despediram-na. Por causa disso a minha mulher e eu tivemos de sair de Portugal e de ir trabalhar para a Alemanha. Fomos de carro, ambos desempregados, com meia dúzia de malas na bagageira e duas crianças no banco de trás. Não foi fácil. Ser jornalista não é fácil."


Na foto, Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira, conhecida como Maria Archer (Lisboa, 4 de Janeiro de 1899 - Lisboa, 23 de Janeiro de 1982). Foi uma escritora portuguesa e uma Mulher mais do nosso tempo do que do seu tempo. Durante a vida, Maria Archer foi uma inconformista, consciente das discriminações e das injustiças, em geral, e, em particular, das que condicionavam o sexo feminino, numa sociedade retrógrada e, como se diria em linguagem actual, "fundamentalista", em que o regime impôs a regressão às doutrinas e práticas de um patriarcalismo ancestral.

A escrita, servida pelos dons de inteligência, de observação e de expressividade foi para Maria Archer uma arma de combate político. Como disse Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante".
Maria Archer, grande escritora, foi homenageada no dia 22 de Agosto de 2015, na Cova-Gala. Em em 1938 na sua novela "Entre Duas Viagens" escrevia assim sobre nós.
"No primeiro domingo de Janeiro faz-se na Cova a romaria anual a São Pedro, padroeiro dos pescadores. No extremo da povoação, num ermo desabrigado, ergue-se a pequena e humilde capela do santo. Em redor alongam-se as dunas cobertas de juncos, enquadradas pelo pinhal e pelo mar. S. Pedro, se viesse dos areais da Judéia, com as suas rústicas sandálias de caminheiro pobre, as suas barbas austeras, a face tostada pelo ar salgado, sentir-se-ia à vontade entre a gente da Cova e no seu agreste cenário de deserto ribeirinho".
Foi um combate em que a sua vida e a sua arte se fundem - norteadas por um ostensivo propósito de valorização dos valores femininos, de libertação da mulher e, com ela, da sociedade como um todo.
Ela é já uma Mulher livre num país ainda sem liberdade - coragem que lhe custou o preço de um longo exílio ...
Maria Archer é uma grande escritora E pode ser lida apenas como tal. Mas permite também diversas outras leituras.

2 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Sobre este teu oportuno texto, três notas deixo:

Primeira - não há qq risco de se regressar a esse tratamento aos operários da pesca... e não há por uma razão simples, já não há frota pesqueira nem bacalhoeira...
Segunda - tal com a frota pesqueira, também a imprensa foi à vida. O que existe é um arremedo disso
Terceira - quando em janeiro de 1982, Maria Archer nos deixou, ainda restava a esperança. Hoje, também ela se vai perdendo...

Abraço

ANTÓNIO AGOSTINHO disse...

Os tempos vão difíiceis. Mas, quem tem memória, sabe que já estiveram piores. Abraço