“Entretidos que estamos na nossa vida diária, alheados e mergulhados em problemas muitas vezes comezinhos, esquecemo-nos de ver. Olhamos, mas não vemos.
Mas eu vi. Pouco deveria passar das 23h30. Passeava o cão no jardim fronteiro ao prédio quando um automóvel parou junto ao parqueamento. As pessoas que saíram da viatura não me conseguiam ver. A rua estava deserta. Um casal e um rapaz, não deveria ter mais do que 6 anos. Uma família como qualquer outra. Aproximaram-se a medo dos caixotes. Um a um, foram recolhendo lixo alheio. Lixo que para esta família parecia servir. O rapaz colocou vários sacos na bagageira até que algo o fez parar, saltando apressado para o banco traseiro da viatura. Espreitou pelo vidro. Estavam os três a olhar para mim. Senti a vergonha deles por terem sido avistados e a minha por não saber reagir. Fiquei sem chão.”
Durante a minha vida, principalmente na minha meninice, que me lembro de assistir a situações semelhantes à descrita.
Todavia, sem demagogia, sejamos sinceros: depois do 25 de Abril de 1974, nunca como agora, estivemos sujeitos a levar tantas estaladas visuais deste tipo.
Senhor Presidente da República, Senhor Primeiro-Ministro, ao que chegámos!..
Pessoas a a comer do caixote do lixo, mesmo à nossa porta...
António Agostinho, o autor deste blogue, em Abril de 1974 tinha 20 anos. Em Portugal havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, nos livros, no teatro, no cinema, na música, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado. Havia medo. O ambiente na Cova e a Gala era bisonho, cinzento, deprimido e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto. O preto era a cor das suas vidas. Ilustração: Pedro Cruz
1 comentário:
pessoas a comer do caixote do lixo e a saírem de um automóvel? o que está de errado com esta imagem? algo que não compreendo, preferem manter o luxo e comer do lixo.
para tornar a situação ainda mais ridícula era o carro ser de uma marca de luxo.
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