Visto aqui de cima , o mar está num ripanço quase total, serenamente a saborear os raios de Sol!
Provavelmente, está a digerir a sua última refeição. Areia, pois claro, ou estavam a pensar noutra iguaria. Sim areia, sedimentos da idade do mundo, outrora pedras, quiçá rochas, grandes ou pequenas, que o tempo num passe de mágica prodigioso transformou em simples grãos, guardando neles a memória dos dias.
O mar é como o homem. Tem dias. A areia, ou melhor, os grãos de areia, são como a memória do ser humano. Tomados numa mão, deslizam suavemente, por entre os dedos, tomando o rumo do vento, quedando somente uns quantos nessa parte central da mão. A concha. É aí que repousam os grãos de areia de que vos falo.
Grande parte da nossa praia está a ficar nua. Não, não estou a falar de nenhuma sereia adepta do nudismo, estou mesmo a referir-me à praia. Os velhos comentam que nunca a viram assim. O mar levou grande parte da areia, fracções da memória dos dias. A praia mudou, acanhou-se, minguou...
Contudo, a praia resiste. Mais pequena, mas ainda preparada para continuar a acolher o grito de liberdade das gaivotas, o riso das crianças, os passeios à beira mar, os romances no ar, a dança de uma brisa suave, os golpes do vento norte, os beijos do mar ou a altivez das ondas.
A praia resiste...
Todos temos de aprender com o que a praia nos ensina. Exactamente isso, a ter esperança, a resistir. A enfrentar as ondas da vida, por mais alterosas que elas sejam
Há por aí, profundas desilusões perante as dificuldades da vida. Nunca desistam. De viver. Aprendam com o exemplo da praia.
A vida segue os ritmos do mar, ora calmo e sereno, ora bravo e altivo.
Temos sempre muito a aprender...
Também com o mar.
António Agostinho, o autor deste blogue, em Abril de 1974 tinha 20 anos. Em Portugal havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, nos livros, no teatro, no cinema, na música, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado. Havia medo. O ambiente na Cova e a Gala era bisonho, cinzento, deprimido e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto. O preto era a cor das suas vidas. Ilustração: Pedro Cruz
6 comentários:
É a essa mudança constante que chamamos dialéctica, que forma e deforma os contrários, neste caso mar e praia, vento e areia, sol e nuvem. Parece que apenas se completam, mas criam tensões e dinâmicas perpétuas cujo essencial temos que reter para interpretar e agir, com a ideia clara que há tempos e espaços, perspectivas e imponderáveis que condenam ao fracasso a visão determinista das coisas.
Ver a praia e o mar sempre iguais é cegueira absurda. Tal como na vida dentro e fora de nós.
Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
Sophia Mello Breyner
Essa também é a "minha praia."
Beijinhos
Eu gosto do vosso gostar da "vossa" praia, que também é minha. Muito obrigada pelo empréstimo.
Este post está diferente!Há um sentimento nesta tua escrita...
leio e deixo-me envolver...p'lo mar, p'lo sol,pela natureza, pela tua maneira de falar...sobre a praia...sobre as vidas...
flores pra ti
Como escrevi no texto: “o mar é como o homem. Tem dias. A areia, ou melhor, os grãos de areia, são como a memória do ser humano. Tomados numa mão, deslizam suavemente, por entre os dedos, tomando o rumo do vento, quedando somente uns quantos nessa parte central da mão. A concha. É aí que repousam os grãos de areia que retemos na nossa memória.”
Pois é; todos temos dias. E, viver, assim, tão sensível, não pode ser sempre. O mundo dos vencedores não é para pessoas sensíveis...
Obrigado pelas tuas palavras, fruto da tua grande sensibilidade.
Continua, assim, sensível, que isso fica-te bem...
Eu, prometo, vou ter mais dias...
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