Um conto de Filipe Tourais
(Qualquer semelhança com a realidade será pura coincidência?)
"Francisco Esperto, doravante Chico, tinha uma empresa. Como era casado em comunhão de adquiridos, a empresa era metade sua e metade da sua mulher, à qual o Chico se referia como “a sua esposa” em cerimónias e apresentações públicas. Só entre amigos e nem sempre é que aparecia "a minha mulher". Ele próprio também acumulava, era marido e esposo, embora o esposo nunca aparecesse nem em cerimónias públicas. Cenas.
Regressando à empresa, a metade do esposo era metade da esposa também, o mesmo acontecendo à metade da mulher, que era também metade do marido.
Lá por coisas, talvez uma prova de amor, um "amo-te 50%, coisinha mái-fofa", um dia, embora soubesse que se iria desgraçar e ficar sem nada, o Chico decide passar a sua metade para a esposa, que fica com 100% da empresa no registo comercial. Porém, como eram casados em comunhão de adquiridos, surprise, os 100% continuaram a pertencer a ambos em partes iguais, metade dele e metade dela. Ou seja, boas notícias, o Chico não se desgraçou coisa nenhuma. Sequem as lágrimas todos aqueles que já temiam o pior. A empresa continuou exactamente como antes do Chico ter seguido o conselho que lhe foi segredado pelo servidor da causa pública que vive dentro de si, metade do marido e metade da mulher, como acontece com todas as variações patrimoniais ocorridas após o nó em todos os casais que se casem na modalidade do regime supletivo.
E vocês que leram isto perdoem-me que os aborreça com estas coisas que não acontecem apenas em casais de espertos. Acontecem em todos os casais de casados em comunhão de adquiridos e em comunhão geral de bens. Só não acontecem no regime de separação de bens. Os mais espertos é que pensam que podem fintar a lei desgraçando-se sem se desgraçarem nestas trocas e baldrocas de quotas de empresas. E nem o facto de um dos cônjuges ser um prestigiado advogado, conhecedor em profundidade de todos os meandros da Lei, desses que prestam serviços no valor de centenas de milhar de euros, livra estes casais dos efeitos de tanta esperteza junta e concentrada.
Aquele marido e esposo talvez tenha comprado um Código Civil sem as páginas com os artigos relativos aos três regimes de casamento. É preencher o livro de reclamações da livraria que lho vendeu, se é que não o adquiriu em nenhum alfarrabista. Também pode ter acontecido, embora dê no mesmo se o Esperto chegar a Primeiro-ministro. A lei não exclui os expertos da exclusividade que abrange por igual espertos e menos espertos mas honestos. Ele que peça explicações ao alfarrabista. Os alfarrabistas leem muita coisa. Pode ser que tenha sorte e que ele lhe explique que se desgraçou, sim, mas quando se casou. Como acontece com quase toda a gente, acrescento meu. E, caramba, tanto sigilo, tanto mistério, não custava nada explicá-lo na Assembleia da República. Os senhores deputados seguramente saberiam entender. A culpa é toda, toda, toda do alfarrabista. Toda. Já não se pode confiar, é o que é. Já não se pode ser bom. Tempos difíceis."
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