António Agostinho, o autor deste blogue, em Abril de 1974 tinha 20 anos. Em Portugal havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, nos livros, no teatro, no cinema, na música, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado. Havia medo. O ambiente na Cova e a Gala era bisonho, cinzento, deprimido e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto. O preto era a cor das suas vidas. Ilustração: Pedro Cruz
quinta-feira, 30 de novembro de 2006
Carta aberta a um anónimo escandalizado
Há muitos anos, o poeta Louis Aragon, do grupo surrealista, publicou um panfleto em que perguntava a quem o lia se já alguma vez tinha esbofeteado um cadáver. Se não, que se dirigisse a determinada capela onde estava, em câmara ardente o corpo do escritor, (laureado com o prémio Nobel), Anatole France,
acabado de falecer…
Mais ou menos na mesma altura, Almada Negreiros escrevia:
“Morra o Dantas, morra, PIM.”
Muitos anos depois disto o surrealista André Breton morria com o desgosto de o ”escândalo já não ser possível”… Pois sim, numa época em que piadas sobre Deus, o Papa, a Santa madre Igreja, a Arte, a Cultura, o poder, etc, já não faziam chiar ninguém… Ora bem, o escândalo é ainda possível sim senhor, mas pequenino, ao nosso nível, o da pequena blogosfera figueirense, e manifesta-se. Anonimamente, incógnito, na clandestinidade, por pessoas que, se calhar, nunca leram uma linha do velho transgressor, nem lhe compraram um livro ou um quadro ou sequer lhe entenderam as boutades, e se limitam apenas a ler-lhe o obituário no jornal humedecido pelas lágrimas de anónimos ou conhecidos crocodilos…
Ora o escândalo é possível sim senhor, e vem a propósito de um simples e pelos vistos, mal conseguido cartoon sobre a morte de um escritor surrealista…
(o velho pândego deve estar sacudidinho de riso).
Um cartoon, como sabe, é um desenho que procura sintetizar enfática ou exageradamente uma ideia por vezes complexa, com o recurso ao menor número de meios possível, tendo como objectivo provocar o riso ou, se possível, a reflexão. É tanto mais eficaz quanto, muitas vezes,
mais explicitamente equívoco.
Os surrealistas amam o equívoco, o paradoxo, o amor louco, a beleza convulsa,
o humor negro… e o escândalo!
Eu fico incomodado que este cartoon (visivelmente infeliz) o senhor incógnito escandalizado o tenha entendido exactamente às avessas das minhas intenções.
O meu lamento, em memória de Cesariny, citando Breton:
“Um filósofo que eu não entendo é um cretino”;
Ora, não sendo eu um filósofo, está à vista que desta vez,
só desta, não me entenderam…
Para esses que não me entenderam e especialmente para si, Sr. Anónimo, faço outro desenho, um esboço de retrato possível da verdadeira destinatária do infeliz manguito.
Vale
Fernando Campos
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4 comentários:
Este anónimo fez-me lembrar Henri Matisse, um dos grandes vultos da pintura do século XX, a par com Pablo Picasso, e um episódio que constará, sem dúvida, dos anais da estupidez:
Numa das suas exposições, um anónimo, como qualquer outro, metido a entendido e a apreciador do belo sexo, aproximou-se do artista e disse-lhe: "Olhe, eu se visse uma mulher como você as pinta, eu fugia". A resposta do velho senhor: "Meu bom homem, eu não pinto mulheres, pinto quadros".
O Matisse a par com o Pablito? Quê dupla? Hombre...ai sempre um espirituoso que borra la pintura! Borrada la pintura, vende-se e só patos bravos como esse de que fala o senhor baku tem dinheiro para comprar pintura. Se não forem eles os pintores só pintavam, não comiam, não percebem de pintura mas compram-na! Fazem viver e dão de comer e presevam as obritas de arte-os quadros- com mulheres enquadradas!
Sr. borra a pintura, não faça um juízo tão negativo dos burguesotes, que até são inteligentes muitos deles, a maioria deles que investe em arte sabe mesmo apreciar. Outros deles é que se armam ao cágado mas também têm dinheiro para isso.
Mas olhe, não menospreze o inimigo.
Concordo que é sinal de inteligência comprar arte, é também um sinal de inteligência saber aplicar os cabedais em algo que pode tornar-se ( quem sabe, não é?) num bom investimento futuro. Mas, até para isso, é preciso um certo faro, que se não se tem, paga-se a quem o tenha!
Ai amigo Baku, o mercado de arte e o mercado de capitais andam de mãos dadas, nós sabemos, a burguesia, de que V. Exª fala, sabe bem que o dinheiro debaixo do colchão não se reproduz! É um círculo vicioso, mas que se há-de fazer? A questão da arte para o povo, era mais no tempo do António Ferro, que modernista, soube reinventar o foclorismo, a arte fascista italiana e o pictoresco rural português, e assim deu a comer, aos intelectuais da época,a verdadeira arte popular. Outro círculo vicioso, caro amigo, o poder a controlar o gosto estético, tal como aconteceu noutras paragens do nosso globo!Como vê, teriamos conversa para meses...! Então, bem haja, caro amigo Baku.
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