A crónica de António Agostinho publicada na Revista Óbvia em Abril de 2022
No dia 25 de abril de 1974 tinha 20 anos de idade. Vivia na Cova e Gala, uma Aldeia bisonha, cinzenta, deprimida e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto, incluindo as que me estavam mais próximas. O preto era a cor das suas vidas. A minha avó Carmina Pereira, Mãe do meu Pai, viúva de um pescador do bacalhau, desde a década de sessenta que vestia de preto. A minha avó Rosa Maia, Mãe da minha Mãe, viúva de um combatente da I Guerra Mundial, vestia de preto desde 1928.
Passou, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, a vestir de preto até 14 de Julho de 2015, dia em que morreu.
O 25 de Abril de 1974 vai fazer 48 anos.
Portugal, antes, era diferente! Havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado, licença para poder usar isqueiro...
E havia medo, muito medo.
Apesar das dificuldades actuais, mudou-se muito. E para melhor.
A democracia política foi conquistada. Em 2022, não é o 25 de Abril que está em causa. O que está em causa é o retrocesso de quase todos os valores de Abril. Em nome de um economicismo balofo que despreza as pessoas, estão a descaracterizar tudo o que de positivo, a nível social e laboral, foi conquistado nos anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974.
Temos assistido ao esvaziamento de conquistas fundamentais da revolução. Neste momento, estamos perante a tentativa da hegemonia da ideologia política da economia neoliberal e do seu projeto regressivo de nova opacidade e gerador de novas desigualdades. Têm vindo a tirar o básico aos portugueses: pão nas mesas, acesso à saúde, ensino de qualidade e habitação digna, em nome de que valores civilizacionais?
Portugal, antes do 25 de Abril de 1974, era um país pobre que tinha alguns ricos. Vivia em ditadura, mas havia democratas que lutavam e morriam pela Liberdade (com os comunistas na primeira linha do combate). Vivia em capitalismo, mas os empreendedores eram quase todos "merceeiros protegidos do regime salazarista". Vivia isolado, mas tinha uma "ala moderada" que aspirava europeizar-se. Era um País ameno e de brandos costumes, mas onde quem procurava remar contra a maré era perseguido, preso, torturado e até morto. Dizia-se crente e civilizado, mas era bárbaro. Religioso, mas não praticante. Recusava ser considerado fascista, mas tinha a PIDE e presos políticos encarcerados sem julgamento, ou com julgamentos fantoches.
Nesse País havia a minha Aldeia. A Cova e Gala era, em Abril de 1974, um pequeno povoado mal iluminado. Quase que não existiam ruas. As casas eram praticamente todas desconfortáveis. Na altura, a Cova e Gala era uma pequena Aldeia esquecida, com cerca de 2 000 habitantes, localizada à beira do Atlântico. Vivia-se ainda pior na minha Aldeia que em algumas localidades vizinhas: nas casas não havia esgotos e a corrente eléctrica era ausência em muitas habitações. Existia muita miséria material, fome e outras privações, as condições de trabalho eram desumanas, existia má nutrição. E havia quadros familiares de risco.
A vivência na Cova e Gala era influenciada pelo que se passava no Atlântico Norte a bordo dos barcos da "faina maior". A pesca ao bacalhau era sustento das família e uma vida para pessoas moldadas às agruras de uma existência dependente de ventos e marés, rijas de corpo e com o coração curtido pelas perdas de amigos e familiares dedicados à mesma lida, mas que encontravam na pesca do bacalhau a expressão máxima desse sacrifício diário que lhes proporcionava angariar o sustento das famílias.
Gente habituada a ter de arriscar a vida para continuar a existir.
O cenário em que cresci, foi o de uma Aldeia de um País negro nas ideias, economicamente débil, que vivia na escuridão de uma ditadura com 48 anos de existência.
Em 25 de Abril de 1974 caiu a ditadura. Chegou a democracia. Considero-me um privilegiado. Nunca deixei (nem deixarei enquanto tiver forças para isso) de exercer o voto, “um direito” que adquiri com a democracia e um “legado” de todos aqueles que lutaram décadas (com os comunistas na primeira linha) para que eu pudesse ter uma vida vivida "quase" toda em democracia, que foi o melhor que ganhei com o 25 de Abril.
O dia 27 de Abril de 1974, na Figueira, foi “uma loucura, extraordinária”. Foi talvez o momento mais vibrante da democracia figueirense. Foi único - nunca vi tanta gente na Rua a manifestar-se. Nunca vi manifestação tão genuína, tão forte, tão festiva, tão alegre e tão intensa no nosso concelho.
Nos anos a seguir ao 25 de Abril o povo envolveu-se e participou na construção da democracia.
Deixo o meu testemunho: a única coisa que me interessava era participar na construção democrática de um País renascido. Preocupei-me em conhecer gente culta e politicamente evoluída para aprender. Fui dirigente sindical. Participei em listas para eleições autárquicas. Fui dirigente associativo. Nessa altura, os partidos estavam activos. Na Gala, ajudei a abrir uma delegação do MDP/CDE. Da sua actividade, recordo a alfabetização de muitas mulheres que tinham os filhos emigrados e não sabiam ler as cartas que recebiam.
Anos mais tarde, em 1986, fiz parte do primeiro executivo da Junta de Freguesia de S. Pedro.
A liberdade de informação e o fim da censura foi uma conquista fundamental e “imbatível” da democracia.
Em 1976, com 22 anos de idade, o jovem que eu era, curioso e sedento de aprender, que vivia numa Aldeia "que era como um novelo de lã em que não sabíamos onde estava a ponta por onde se devia puxar para a desenvolver”, começa a interessar-se pelo exercício do jornalismo. Primeiro, como correspondente do jornal O Diário. Depois, fazendo parte da equipa Barca Nova, onde conheci pessoas extraordinárias, com quem muito aprendi e evoluí.
O que sou hoje, devo-o na totalidade ao facto de ter tido a oportunidade de viver a maior parte da minha vida em liberdade. Por ter vivido 20 anos no salazarismo, que é o nome que se dá ao Estado Novo português, período ditatorial que foi iniciado em 1933 e finalizado em 1974, com o triunfo da Revolução dos Cravos, sei avaliar o que é viver numa ditadura e a reconstrução de uma democracia. Olhando para os 68 anos que tenho de vida, recordo os primeiros 20, os que vivi em ditadura, como um espaço de tempo que custou a passar. Os 48 que vivi em democracia passaram num instante. Do 25 de Abril de 1974 para cá, tudo parece que foi ontem.
A ditadura castra e oprime, bloqueia o pensamento e impede que se escolha.
Viva a Liberdade! Viva o 25 de Abril! Sempre!
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