«O dia de hoje, 24 de Agosto, é um dia muito especial. Não somente por outras razões — e a menor delas não é seguramente o facto de ser o dia, de marés vivas (antigamente), que em Portugal é considerado como sendo "o dia de São Bartolomeu" ou "dia em que o Diabo anda à solta"… e por causa disso em São Bartolomeu do Mar, em Ponta da Barca, e em outros locais, as comunidades marítimas e fluviais o festejarem especialmente com rituais antiquíssimos que fazem parte da Cultura Popular Marítima Portuguesa — mas também porque esta data de 24 de Agosto é a data em que neste país ocorre a efeméride da revolução de 24 de Agosto de 1820… através da qual foi aqui instalado o Liberalismo, e assim se começaram a dar os primeiros passos decisivos (que, depois, ainda iriam ser muito demorados, dolorosos, e incompletos), para a ultrapassagem daquele que, desde sempre, e para sempre, foi, é, e continua a ser, o principal problema estrutural deste país que se chama Portugal, e da sua História: o Feudalismo… O regime senhorial-feudal caracterizado pelo senhorialismo económico monopolista e provinciano, pela feudalização jurídico-política, de tipo local, autenticamente vassálico, e que, muitas vezes, anedoticamene, ou tragicamente, chega a situações extremas, e ridículas, de caciquismo mafioso.
O senhorialismo feudal, típico do "Antigo Regime", desde a Idade Média, e que, neste país, secularmente periférico e subdesenvolvido, mesmo depois dessa revolução de 1820, tem deixado resquícios que têm demorado demais para serem totalmente ultrapassados.
E, hoje, 24 de Agosto de 2020, não se celebra só uma efeméride qualquer e igual a todas as outras, nos outros anos, rotineiramente (não é também somente a data do nascimento do grande escritor mundial, o argentino, de origem portuguesa, Jorge Luis Borges). Hoje, em 2020, celebram-se os duzentos (200) anos do 24 de Agosto de 1820.
E portanto o CEMAR (Centro de Estudos do Mar), com sede na Figueira da Foz do Mondego — embora sempre primacialmente vocacionado para outras matérias, de História e de Património Histórico Marítimo, que não as da História Política portuguesa e metropolitana — não poderia nunca deixar de aqui recordar esta data especialmente significativa, pois ninguém ignora, nem deve ignorar, que nessa revolução de 1820, e na consequente instauração do Liberalismo em Portugal, desempenhou um papel determinante um homem notável provindo desta cidade da Foz do Mondego, o jurista Manuel Fernandes Tomás. Como mostrou o Asssociado Honorário do CEMAR Capitão João Pereira Mano, no livro "Terras do Mar Salgado" que foi editado pela nossa associação científica, a família de Manuel Fernandes Tomás era uma família dos ambientes marítimos e comerciais da Figueira da Foz (vide Cap. João Pereira Mano, Terras do Mar Salgado. São Julião da Figueira da Foz - São Pedro da Cova-Gala - Buarcos - Costa de Lavos e Leirosa, Figueira da Foz: CEMAR, 1997).
É mesmo uma curiosa e significativa coincidência o facto de, na História de Portugal, para a afirmação da nacionalidade livre e responsável (o que, hoje, numa República, chamamos "a cidadania") — para a construção do Estado e para a reforma da sociedade no sentido da modernização e do Futuro (no foro decisivo, que é o jurídico-político e constitucional) —, terem tido reflexões teoréticas estruturantes, e papéis políticos determinantes, a quase quatro séculos de distância (!), duas figuras históricas que, por acaso, se deu a coincidência de terem estado ambas ligadas a esta região, aberta, comercial e progressiva: no século XV o Infante Dom Pedro (1392-1449), Duque de Coimbra e Senhor de Buarcos, Montemor, etc., que governou o país e mandou promulgar as decisivas (civil e "constitucionalmente") "Ordenações Afonsinas" de 1446; e no século XIX o jurista Manuel Fernandes Tomás (1771-1822), que nasceu na Figueira da Foz e foi um dos principais obreiros da decisiva (civil e "constitucionalmente") revolução de 1820.
O primeiro foi o verdadeiro responsável não só pela reflexão filosófica e politológica pessoal que ficou consignada no "Livro da Virtuosa Benfeitoria" de c.1431 mas também pela pioneira e fundacional organização jurídica, sistemática e colectiva, que ficou consignada nas primeiras "Ordenações", em 1446; e o segundo, para além da sua acção organizativa e política, e ainda antes dela, foi também um jurisconsulto apontado para a modernização e racionalização do ordenamento jurídico português, e por isso o autor que produziu o "Repertorio geral ou índice alphabetico das leis extravagantes do reino de Portugal, publicadas depois das ordenações, comprehendendo também algumas anteriores que se acham em observância", em 1815.
Ambos por isso merecem ser evocados especialmente nesta cidade da Foz do Mondego (e têm-no sido), e os seus exemplos podem e devem ser aproximados (e ainda não o foram suficientemente), e é isso que, pela parte do CEMAR, hoje, aqui, se está a fazer. O exemplo de Fernandes Tomás, que a partir do Porto preparou uma revolução, e deu um futuro ao país, tem sido recordado, em termos cívicos e políticos, por quem tem obrigação de o recordar; e a figura do malogrado Infante Senhor de Buarcos que foi assassinado em Alfarrobeira, às portas de Lisboa (e, nessa ocasião, não por acaso, tinha aí consigo os Pescadores de Buarcos), tem sido sobretudo evocada pelo CEMAR (como nos compete, por sermos uma associação científica local apontada para o Património Cultural Marítimo desta região da Beira Litoral e Foz do Mondego).
Neste ano de 2020 — no ano que é, em números redondos, dos dois séculos da revolução e da Constituição Liberal de 1820 — espera-se que, portanto, sejam possíveis as celebrações, verdadeiramente significativas, que ainda venham a poder ser feitas, no decorrer do ano, e até ao seu fim, na sua cidade da Figueira da Foz, do jurisconsulto e homem político que aqui nasceu em 1771. Ao que parece, infelizmente, não veio a concretizar-se a ideia que havia sido proposta numa conferência de S.E. o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, realizada no Salão Nobre da Câmara Municipal da Figueira da Foz, promovida pelo seu anterior Presidente de Câmara (um jurista nascido nesta mesma cidade em que veio a ser autarca, depois de ser Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de Coimbra, o Exº Senhor Dr. João Ataíde, entretanto precocemente falecido): a ideia de que esta cidade natal de Fernandes Tomás tomasse a dianteira, caminhasse nesse sentido, e trabalhasse para isso, e assim fosse a cidade em que viessem a ser centralizadas celebrações verdadeiramenete nacionais, e significativas, da figura do "Patriarca da Liberdade”.
Pela parte da nossa pequena associação científica privada — que nisso não poderia nunca ter especiais responsabiidades, ou capacidades, pela exiguidade dos nossos recursos (sempre sem querer receber e gastar dinheiro público) e por não ser essa a nossa vocação estatutária — aquilo que desde há muito temos praticado, e consideramos a nossa própria celebração do Liberalismo oitocentista, estando sediados na Figueira da Foz, foi a publicação (e a distribuição, gratuita, e generalizada, oferecidos a quem quer que no-los peça) dos dois grossos e sólidos volumes (tão grandes em dimensão quanto em qualidade, erudição, e interesse) da obra do nosso querido e saudoso associado Professor Hélio Osvaldo Alves, professor catedrático da Universidade do Minho, doutorado pelo University College da Universidade de Londres, presidente da Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos, etc., e que tivemos o prazer e a honra de ter como segundo presidente da Assembleia Geral do Centro de Estudos do Mar (sucedendo nessas funções ao também saudoso Dr. Luís de Melo Biscaia, vereador da Cultura da Câmara Municipal da Figueira da Foz, entretanto também ele já falecido).
A distribuição, gratuita e desinteressada, que desde há anos fazemos (e vamos continuar a fazer, para quem no-los peça) desses dois importantes volumes sobre História do século XIX que o CEMAR invulgarmente editou na Figueira da Foz (e que são, na carteira editorial global das dezenas de edições do CEMAR, algo de verdadeiramente único e excepcional, por não dizerem especialmente respeito à vocação estatutária desta associação apontada para o Mar e a História Marítima) é a nossa maneira de celebrarmos o Liberalismo oitocentista (a Revolução Francesa, e os seus reflexos em toda a Europa, em Portugal, e até mesmo em Inglaterra).
— Hélio Osvaldo Alves, Razão e Direitos (1789-1802) — A Revolução Francesa em Inglaterra. As Ideias e os Textos, Figueira da Foz: CEMAR, 1999.
— Hélio Osvaldo Alves, As Carroças da Subversão (1803-1822) — A Revolução Francesa em Inglaterra. As Ideias e os Textos, Figueira da Foz: CEMAR, 2002.
Estes volumes ainda hoje continuam a ser oferecidos a partir da Figueira da Foz.
A outra forma através da qual o CEMAR vai prestar o seu contributo para a celebração do Liberalismo, na Figueira da Foz, neste ano emblemático de 2020, vai ser através da manutenção do Encontro do Mar (embora, devido à pandemia da Covid 19, em teleconferência e emissão telemática, e não ao vivo e com público presente) que estava previsto, na culminação do ano, e na culminação dos Encontros do Mar, para o dia 12 de Dezembro de 2020, com o Professor José Adelino Maltez (do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa), sob o tema "(Re)Pensar a Regeneração de Há Duzentos Anos (1820-2020)”.
A celebração da memória do Progresso, desde a Idade Média — e o resgate da "maldição" dessa "memória" — têm sido, desde há vinte e cinco anos, um combate do Centro de Estudos do Mar nesta cidade da Figueira da Foz; e no que diz respeito à figura medieval do Regente da Coroa de Portugal que foi Senhor de Buarcos e deu a Portugal o seu primeiro código sistemático de leis — um momento, fundacional, da construção do Estado Português, contra o Feudalismo — esse combate vai continuar a ser travado, para futuro, no âmbito do processo para a definitiva e inadiável criação do Museu do Mar da Foz do Mondego nesta cidade. Um processo que, no entanto, continua numa situação incompreensível, sem que acerca dele existam quaisquer desenvolvimentos, pelos quais se continua a aguardar.
O combate pelo Progresso e pelo Futuro, nas regiões da Beira Litoral do antigo Ducado de Coimbra do Infante Dom Pedro e do seu neto e herdeiro político, o "Príncipe Perfeito" Dom João II (a quem o cronista chamou, logo no século XV, "próprio e verdadeiro coração da república"), é um combate que o CEMAR faz desde a sua fundação, em 1995, com a publicação, logo nesse primeiro ano, do livro de Alfredo Pinheiro Marques, A Maldição da Memória do Infante Dom Pedro e as Origens dos Descobrimentos Portugueses (Figueira da Foz: CEMAR, 1995).
Os inimigos desse Progresso e desse Futuro são aqueles que, desde o princípio, nos séculos XV-XVI, sempre o foram (e já se instalaram cá na Beira Litoral para isso mesmo, para asfixiar estas regiões). Os seus expoentes principais são o senhorialismo, de tipo eclesiástico (mesmo quando dito "pós-moderno"… e sempre hipocritamente "intelectual"), da Universidade que foi trazida de Lisboa, juntamente com a criação da Inquisição, em 1536-1537, precisamente para asfixiar política e culturalmente, e oprimir económica e socialmente, estas regiões da Beira Litoral (intitulando-se, desde então, com o nome de "Universidade de Coimbra", e ao longo dos séculos seguintes semeando a ignorância, o reaccionarismo e a hipocrisia à sua volta), e o senhorialismo feudal e nobiliárquico de um ramo colateral da Casa de Bragança, o dos Duques de Cadaval (Condes de Tentúgal e Marqueses de Ferreira), que, desde o século XVI, foram instalados em Tentúgal e em Buarcos precisamente para asfixiarem todas estas regiões da Beira Litoral que haviam sido do Ducado de Coimbra, e ao longo dos séculos seguintes o fizeram sempre. E por isso não é de admirar que, depois, nas décadas iniciais do século XIX, essas duas entidades senhoriais e feudais, a Universidade dita "de Coimbra", instalada no antigo Paço da Alcáçova onde havia vivido o Infante Dom Pedro, e os Duques de Cadaval instalados no Paço de Tentúgal onde também havia vivido o autor da "Virtuosa Benfeitoria", fossem regionalmente os dois expontes máximos do reaccionarismo absolutista, caceteiro, e boçal, que em nome do Feudalismo tentou impedir o advento do Liberalismo em Portugal.
Os Duques de Cadaval, latifundiários e feudais em pleno século XIX, e por isso odiados pelas populações locais (quer pelos camponeses de Tentúgal, quer pelos pescadores de Buarcos), foram por fim desalojados pelo triunfo do Liberalismo, e o antigo Paço do Infante Dom Pedro em Tentúgal (que ocupavam desde há três séculos!), por ser seu, incendiado pelas populações.
O outro exponte regional do Absolutismo caceteiro e reaccionário, a Universidade trazida de Lisboa juntamente com a criação da Inquisição em 1536-1537, e desde então já instalada em Coimbra desde há mais de dois séculos, e por isso auto-intitulando-se com o nome, abusivo e erróneo, de "Universidade de Coimbra", teve por fim nas primeiras décadas do século XIX que se conformar com o triunfo do Liberalismo que não conseguiu impedir (nem ela, nem o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra… ao qual, desde o princípio, sempre esteve umbilicalmente ligada, pela hipocrisia clerical e pela ignorância doutoral, apropriando-se ambos do nome da "Sophia" do Infante Dom Pedro, e a partir de Coimbra se digladiando feudalmente e judicialmente pela posse dos senhorios económicos da Beira Litoral, desde o castelo de Buarcos até Leiria, etc.).
E assim essa Universidade continuou pelo século XIX adiante, para na sua segunda metade sobre ela ser dito o que havia para ser dito, como merecia, por Antero de Quental e Eça de Queirós. E pela célebre frase, habitualmente atribuída a Guerra Junqueiro, sintetizando tudo.
O que essa Universidade continuou a fazer sempre — não por acaso… (e, assim, cobrindo-se de ridículo…) — foi continuar a ensinar, nos bancos das suas aulas de História e de Direito, ainda em pleno século XX (praticamente até à data de 25 de Abril de 1974…!), a curiosíssima concepção, tão reveladora, de que "em Portugal nunca existiu o Feudalismo"… [sic]… Era, e continuou a ser, para sempre, a Universidade em que, em pleno século XX, a História poderia vir a ser ensinada, e dirigida (como veio), por alguém como Torquato de Sousa Soares…
Trata-se, aqui, em tudo isto (que é a História de Portugal…), de facto, da questão, de sempre, do Feudalismo e do Liberalismo. E, agora, estamos em 2020, duzentos anos depois.»
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