"O Coro dos Defuntos", prémio Leya 2015, usa uma linguagem pretensiosa e anda aos tropeções entre um romance de costumes e um mistério.
De um coro dos defuntos, para mais galardoado com o prémio Leya, esperaríamos, se não a melodiosa voz dos Anjos em Glória, pelo menos mais traquejo literário. Este novo coro pode cantar mas não alegra: linguagem pretensiosa, escalada entre o popular e o erudito, na forma que Aquilino criou e já tantos imitaram. O resto é um solfejar monótono de acontecimentos históricos, a velha cantiga das aldeias ajoujadas de bichos canhestros, brutos e ignorantes. Em linguagem musical, um breve resumo: nota baixa, com sorte de se não marcar o tempo. Aí, teria a nota de ser mínima.
O romance de António Tavares foi construído a partir da linguagem. O romance passa-se numa aldeia, único sítio em que o linguajar aquiliniano ainda podia a custo respirar. Usam-se palavras difíceis, cheias de ressonância visigótica, espingardeadas a esmo nas cenas de caçadas e que brilham entre os altares da religião popular, tão úteis ao escritor palavroso: há, nos paramentos e nos missais do vetus ordo, um imenso léxico hoje quase desconhecido que ele se pode entreter a desbravar.
Não nos deteríamos antes de mais na forma se não o sugerisse o próprio livro; a marca mais vincada do Coro dos Defuntos, a par de um bordão (diz ela) que volta e meia ajuda a amaciar a passagem de uns temas para os outros, é esta linguagem pouco habitual, amanhada na gíria agrícola, com variações sobre palavras vulgares e uns requebros de erudição clássica, que concede uns latinismos à narração.
A opção, não tivesse já dado frutos pela pena de Aquilino, secado pela de Jorge Reis e saturada por uma multidão de artistas interessados em aproveitar o solo fértil, até podia ser original. Mas se o fosse, se cada exclamação não consistisse num grito de afirmação de paternidade usurpada ao autor do Malhadinhas, e se em cada personagem uma protuberância aquilina não indicasse a verdadeira filiação, que poderíamos dizer mais do estilo?
Que não deixa de ser cómica a decisão (não sabemos se do autor se do editor) de dificultar a vida a quem lê pejando o texto de um jargão regional incompreensível para depois a facilitar pondo um dicionário com os termos difíceis usados no fim do livro; que este dicionário é uma cândida confissão pública do forçada que a linguagem é: habitualmente, quando alguém escreve, procura dizer aquilo que quer; se usa um dicionário daquilo que disse, não estará a mostrar que afinal quis não expressar aquilo que quer expressar? O estilo é, de certa forma, a marca da personalidade do autor, aquilo que é próprio dele; um dicionário só mostra a artificialidade do estilo, mostra que, de certa forma, foi forjado, não é sincero; não é, sequer, estilo.
O lamentável erro em que cai o autor está em julgar que o uso de palavras estranhas é uma forma de fazer estilo, ou que o uso de um léxico variado é uma forma de precisão linguística. A habilidade de fazer estilo com um léxico variado não consiste em usá-lo: nesse caso, o dicionário de Morais já teria há muito destronado o Padre António Vieira como Imperador da língua portuguesa; a habilidade que tem Camilo, que tem (nem sempre, mas ainda assim…) Aquilino, passa por usar o vocabulário de uma forma tão expressiva que este consegue imediatamente ser percebido. Não é preciso um glossário para o Amor de Perdição porque não há nele nada que se perca: as palavras não só exprimem as imagens, como se exprimem a si próprias. O que acontece no livro de António Tavares é que perdem força as ideias e significado as palavras, o vocabulário interrompe, atravanca, cria trânsito; a história está neste livro como Eliza Doolittle na primeira aparição na sociedade. Pouco à vontade, ajaezada com roupas que não são as suas, excessivamente empolada, de tal forma que tudo soa a falso.
Há uns momentos de espanto, em que a junção dos elementos logra uma verdadeira habilidade, mas em todo o resto a mistura é de tal forma grotesca que o resultado acaba por ser o mesmo que ver um chimpanzé com farda de colégio a acertar exercícios de aritmética: a vestimenta é tão ridícula – neste caso, tão enfatuada – que a verdadeira proeza perde efeito.
Uma última nota sobre a linguagem, já mais que mastigada: a quem quer usar o vernáculo mais montanhoso com o pretexto de tratar de uma aldeia insulada, não basta enchumaçar o texto com palavrório beirão; tem também de purgá-lo de barbarismos. Mais estranho do que ouvir alguém falar de uma “lura” é a surdez selectiva de uma aldeia que não conhece a língua como ela se fala na sua pátria mas apropria-se de estrangeirismos como “gare” para dizer embarcadouro ou estação.
Mas enfim, percorrida a linguagem, aproveitemos a chegada à “gare” para mudar de linha…
Romance de costumes ou mistério?
Hesitamos, no entanto, em qual apanhar, porque a respeito do enredo parece haver pelo menos duas. Não conseguimos perceber se o autor quis fazer um romance de costumes, a saltar entre cenas da vida aldeã, de tal modo que a intriga passasse para segundo plano, ou se quis urdir um mistério que dominasse a narrativa.
Parece ter andado aos tropeções entre uma hipótese e outra, sem ter verdadeiramente decidido escolher. Para a primeira hipótese, concorre a entrada em cena da Rainha e sua irmã, do posteriormente emigrado Jorge, ou de Manuel Rato. São personagens que a dado momento da narrativa ganham importância, antes de desaparecerem deixando, na melhor das hipóteses, um tímido rasto de menções breves aspergidas pelo texto. Podia fazer sentido acrescentá-las, embora não sejam de importância capital para o enredo – Manuel Rato serve para a engorda do drama principal e Jorge é apenas um instrumento cuja única característica é ter um instrumento que mostra a transformação da Olivita. Podia fazer sentido acrescentá-las, dizia-se, caso servisse para dar perspectivas diferentes de uma situação, acrescentar dramas complexos da personalidade humana, qualquer coisa; mas a sensação com que ficamos é de que não existem personalidades. Todas as personagens são manequins curvados ao jugo estilístico, que cumprem a função de joguete enquanto o autor tem uma descrição elaborada para apresentar e que, sorvada a descrição, morrem ou emigram sem que isso provoque sequer um pensamento sobre um movimento comum de êxodo ou aumento da solidão. Isto é, nem o facto de as personagens desaparecerem de uma maneira abrupta parece ser propositado.
Repete-se: a opção de apresentar uma série de personagens com pouca relevância para o corpo principal seria legítima, se elas fossem levadas até ao fim. O que acontece é que elas são demasiado expostas para ambiente e demasiado esquecidas para serem importantes.
Podia um enredo bem construído dirimir todas estas questões e provocar a remissão do livro; no entanto, o corpo principal – o argumento – nem sequer é muito cuidado. O tronco da história é a morte da Chinchona, antiga prostituta, que aparece estrangulada. Podia nascer aqui certo mistério, mas o autor trata logo de o sufocar, ilibando para os leitores o principal suspeito à luz da aldeia. Disfarça-o com uma historieta místico-absurda sobre pedras, esquece o enigma por uns tempos e só volta a ele para o resolver com uma solução semi-arbitrária, que o autor já quase tinha eliminado (quem a mata é a mulher de um tal Albano que visita a prostituta frequentemente, movida pelo ciúme, quando o marido partilha o leito entre mulher e cunhada, sem que isto a enciume).
O crime é resolvido por uma denúncia, cuja justificação é dada sem grandes delongas por uma vidente: a antiga beata, vertida em rapariga sofisticada, teria visto o crime. À medida que deixa de pertencer psicologicamente à aldeia, vão afrouxando os laços que a ligavam aos vizinhos e acaba por fazer a denúncia. Não se explica se haveria um peso na consciência, porque é que o desinteresse pela aldeia provoca um revigorar do caso e não um esquecimento, nem há sequer um sinal de mudança provocado pelo peso do segredo, importante o suficiente para motivar um suicídio.
É esta a partitura do coro dos defuntos. Última nota, apenas, para dois aspectos que marcam também o livro. O autor, com grandeza e à-vontade cosmopolitas, de conhecedor, vai mesclando uns acontecimentos históricos na relação da vida aldeã. São estes interlúdios curtos, com a profundidade e informação plástica de um manual de liceu ou, por vezes, tão arbitrários como resultaria da consulta esparsa de jornais coevos: um número da Flama, talvez um Século Ilustrado, e pouco mais. Seria um entretém inútil, se não servisse para mostrar como as personagens são criações vocabulares, não pessoas. Estas notícias motivam, por vezes, fumos de comentador político nos aldeãos. Ora, a forma de comentar passa por encontrar uma semelhança auditiva ou uma ambiguidade semântica na descrição séria dos acontecimentos e convertê-la numa versão dadaísta sem mais relação do que parecenças fonéticas.
É esta uma doença que ataca vários autores desde o advento do “realismo mágico”. Mas há outra, mais antiga e com antibióticos suficientes para já estar dizimada, que volta e meia ataca ainda António Tavares. Trata-se do velho lugar-comum da literatura jacobina que consiste em insinuar maliciosamente umas certas interrupções clericais no voto de castidade, certas permissividades para com o pecado em troca de dinheiro e, claro, a libertação sexual da virgem púdica. Neste caso, então, o texto transborda classe e denodo: a virgem desce do alto de uma árvore para aplicar uma felação num pastorinho.
Síndroma de um velho estilo, já repisado, morto e enterrado: enfim, é mais um a juntar-se ao coro.
Nota de rodapé.
O ex-político António Tavares, foi recentemente medalhado pela Câmara com um voto contra...
Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.
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