Conto esta história na primeira pessoa, porque é a narrativa
de uma experiência de vida difícil de esquecer…
Há quem pense que foi a letra que fez do “Grândola” a canção
escolhida para “senha de avanço” na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, que
foi o poema ou a figura de José Afonso, per se… mas não… se tudo isso pesou, e
pesou decerto, a composição do Zeca tornou-se o símbolo da revolução dos cravos
por um significado maior, que adquiriu menos de um mês antes. Foi num
acontecimento em que participaram muitos portugueses, de forma espontânea, mas
que passou relativamente despercebido na comunicação social de então, nesses
tempos em que a Imprensa, para falar de certas coisas, tinha que fazê-lo “nas
entrelinhas”…
Estava-se em Março de 1974.
A Casa da Imprensa organiza, no Coliseu dos Recreios, o
“Primeiro Encontro da Canção Portuguesa”.
Quase não aconteceu, porque a necessária autorização nunca
chegou. Segundo declarações de José Jorge Letria à Visão, trinta anos depois,
“O regime já estava nitidamente em fase de implosão. Quiseram derrotar-nos não
com uma proibição do Festival, mas com uma não-resposta. Até ao dia do
espectáculo ainda não sabíamos se tínhamos, ou não, autorização. Por volta das
17 e 30 do dia 29, quando cheguei ao Coliseu, já havia muita gente à volta, e
ao fundo da Avenida da Liberdade lá estava a polícia de choque… estava a
desenhar-se ali um confronto!”
O ambiente no país era tenso: menos de duas semanas antes
tinha ocorrido o golpe frustrado de 16 de Março, a censura dominava.
Eu trabalhava então como repórter free-lancer para o
programa “Limite” da Rádio Renascença (o tal que tocou o “Grândola Vila
Morena”) e fazia em média seis reportagens de exteriores por semana, com não
mais que uma a passar as malhas da censura.
Nessa noite, fui ao Coliseu, armado de gravador e uma grande
vontade de ouvir as vozes que os censores da rádio baniam.
O ambiente era quente, a despeito de uma primavera ainda
fria… os bilhetes tido sido todos vendidos e houve quem ficasse à porta. O
Governo fez deslocar para o Coliseu muitos agentes da ex-PIDE, que então se
chamava DGS, misturados com os espectadores.
A primeira coisa que vi quando cheguei foram dois
cavalheiros da censura a verificar as letras do que ia ser cantado – o visado
era Adriano Correia de Oliveira, depois seguiram-se todos, sem excepção – o
Zeca lá conseguiu ordem para cantar o Milho Verde e uma música alentejana que
não pareceu perigosa aos senhores do lápis vermelho, o “Grândola”…
Do palco, a música abraçou um Coliseu com cerca de sete mil
pessoas.
Ali estiveram Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo, Pedro
Almeida, Fausto, Barata Moura, Vitorino, Adriano Correia de Oliveira, Zeca
Afonso, Carlos Paredes, José Jorge Letria e Manuel Freire.
Tudo foi normal até à chegada ao palco do “cantor
andarilho”. Zeca cantou o Milho Verde e a plateia pediu as canções que mais
gostava… “Os Vampiros”, foi um grito que ouvi várias vezes.
Nessa altura, decidi sair dos bastidores e fui para a
plateia, gravar tudo mais de perto.
José Afonso ia dizendo que não podia cantar o que o público
queria… “Não pode ser, percebam… vamos cantar outra coisa”…
Foi então que se começou a fazer História.
Zeca cantou o Grândola. A meio, a plateia juntou-se-lhe,
depois o resto do Coliseu, e também os artistas que tinham estado em palco –
voltaram, deram-se braços, cantaram juntos, numa fila que enchia a boca de
cena.
A canção estava no fim, por essa altura… e foi natural que
nem chegasse a terminar, recomeçando agora a sete mil vozes!
Eu corria de pessoas em pessoa, recolhendo testemunhos que
não conseguia ouvir, microfone encostado às bocas…
O som era avassalador, uma música simples, uma letra que
todos sabiam, sete mil peitos em riste… até àquilo que foi a mais
impressionante manifestação espontânea que assisti em toda a minha vida!
Já o Grândola ia em fins de segunda volta, aconteceu o
inesperado…
… a certa altura, em vez de a música continuar alentejana, o
próximo verso foi o primeiro do Hino Nacional – assim, sem pausa, sem
transição, sem que ninguém tivesse dito nada… parece que foi um sentimento
colectivo que sete mil pessoas tiveram!
Grândola Vila Morena transformou-se em Heróis do Mar e foi
cantado da primeira à última estrofe, sete mil portugueses de pé a fazer vibrar
a sala com o hino da pátria amordaçada, numa repentina liberdade assumida ali e
então.
Nada poderia ter sido mais claro, nenhum grito faria mais
sentido.
Foi um momento que ficou escrito em letras de memória para
quem lá esteve, um momento inolvidável, uma pedra de História.
Tinha nascido a razão maior por que “Grândola Vila Morena”,
menos de um mês depois, se tornaria a escolha natural para uma senha que iria
abrir as portas a um pais novo!»
Pedro Laranjeira
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