A Figueira dos meus tempos ainda é a do carro americano,
esse brinquedo inefável tirado a um par de mulas e que desenhava um jubiloso
percurso desde o largo fronteiro à estação (havia um túnel junto ao Ténis
Clube) até um pouco para além de Buarcos.
Casinos eram vários: o Europa, hoje parece que pensão, onde
todas as noites se exibia um excelente quarteto de que era pianista o
compositor Ruy Coelho; o Espanhol, na actualidade Café Nicola, com atracções de
vário tipo; o Oceano, animado pelo conjunto do hábil pianista figueirense de
apelido Mesquita, mais conhecido por Mesquitinha, pai de 6 ou 7 filhos e de
temperamento bastante remexido e ambíguo; por fim, o Grande Casino Peninsular,
que atingiu por essa época os momentos sem dúvida mais prestigiosos de toda a
sua história.
Dirigido por Ernesto Tomé e Arménio Faria, figuras ímpares
de largo espírito criativo, lúdico e bem-humorado, ali se efectuavam as sete
voltas ao casino (réplica juvenil de certos feitos do ciclismo local); e essas
admiráveis festivas garraiadas infantis, com garraios autênticos, e os
rapazinhos vestidos a carácter (lembra-se, Dr. Joaquim de Sousa?), enfiados em
nervosos cavalos de pasta, prontos, os corcéis, a entrarem ao som de um paso
doble nobremente na arena.
Pelo menos uma vez por semana havia música de concerto pela
orquestra de Salão regida pelo notável violinista René Bohet. E música militar
no coreto do Jardim. Onde, santo Deus, tudo isto já vai.
A Figueira desse tempo era uma cidade culta. Exigente,
cosmopolita e viva, cidade aberta e atractiva, muito procurada por espanhóis da
raia e da meseta. Muitos outros estrangeiros vinham para a então “Rainha das
Praias” em busca de sol, iodo, mar e diversões.
Personalidades como Vitorino Nemésio, de quem tive a honra
de ser amigo, ali passavam com a família a época balnear, frequentando o então
querido Professor a Farmácia Gaspar, na rua da Liberdade, onde volta e meia se
reunia com Joaquim de Carvalho, João de Barros, Mesquita de Figueiredo, Gaspar
Simões e outras imperecíveis figuras tutelares.
Impossível esquecer as garraiadas de beneficência, com o
David Viana, o Boa Nova, o “Charlot” e outros mais, todos de branco (…)
Sim, esta era a minha cidade, a minha rara cidade de
outrora, pequeno burgo de ruas de vento e palmeiras, lugres, caiaques,
gaivotas, cais solitários e marés vivas.
Luís Cajão, Um Secreto Entardecer, ed. Escritor, Lisb. 1998, via ÁLBUM FIGUEIRENSE
Um "secreto entardecer" e também um secreto desejo de todos nós de reviver a linda Figueira de outrora, como escreveu, Luís Cajão, no pergaminho da saudade, como ele o soube fazer tão bem quase no fim do caminho; tão desprendido e despretensioso que nem sequer queria ser lembrado como escritor:
ResponderEliminar«Nem sequer tenho obra que justifique tal presunção. Há uns trinta anos que figuro na História da Literatura Portuguesa. Se lá ficar mais dez ou vinte após a minha morte, isso já será para mim uma recompensa imerecida, não só imprevista mas de todo inútil. É tudo tão fugaz, frágil e transitório, que não vale sequer a pena ter preocupações dessa ordem».
Nunca é demais um registo de agradecimento por o nosso amigo e conterrâneo Agostinho, nos ter trazido à memória aspectos dos anos dourados da Figueira, cosmopolita e cheia de vida e bem assim desse grande Figueirense que foi Luís Cajão, cujo nome, a par de outras figuras impares da cultura de então, ficará para sempre gravado na história da cidade.