«Tive o privilégio de crescer em Leça da Palmeira, a 800 metros de um complexo habitacional a que todos chamávamos Bairro dos Pobres. A palavra bairro, nos anos 1970, já suportava uma certa carga dramática, parecida com a que alguns lhe atribuem agora. Como hoje acontece, as pessoas não moravam lá por acaso. A Igreja, ao tempo uma espécie de estado dentro do Estado, desempenhava um papel social ainda mais relevante, quase em exclusividade, ajudando famílias carenciadas a encontrarem um teto. À medida que Portugal avançou em democracia, os poderes públicos assumiram as responsabilidades inscritas na Constituição, o país tornou-se mais justo, transformou-se, cresceu e desenvolveu uma rede importante de apoios sociais, procurando fomentar a igualdade de oportunidades. Mesmo assim, falhámos. E não é por continuarem a existir ricos e pobres, apesar de ser necessário fazer muito mais no sentido de reforçar as políticas de integração. O maior problema é que, cinco décadas depois do 25 de Abril, Portugal libertou-se da ditadura e ainda há cabeças amarradas e a amarrar à palavra bairro uma série de estigmas. Como muitos leitores terão neste ou noutro qualquer, também eu tenho familiares e bons amigos com origem naquele bairro de Leça da Palmeira, pessoas bem formadas, à semelhança de tantas que nascem em ecossistemas mais privilegiados. Socorro-me de uma espécie de frase feita: “Podes sair do bairro, mas o bairro nunca sai de ti”. De certa forma, até pode fazer sentido. Talvez o facto de terem crescido lá os tenha ajudado a moldar o caráter de modo positivo e infinitamente mais digno do que o de muitos criminosos de colarinho branco, por exemplo.»Vítor Santos
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