"«Quantos há?, quem ganhou?, quem perdeu?» Em Portugal, o debate político pré-eleitoral nunca tinha sido assim. Confrontos duelizados e curtos, moderados por jornalistas que deixaram correr toda a imoderação, atropelos e insultos, com perguntas a suportar narrativas pré-existentes em vez de servirem o debate esclarecedor, sempre em busca do espectáculo sensacionalista. Cultura de derby, com intermináveis antevisões de cada «jogo», com flash interviews mal este terminava e a que se seguiam espaços de comentário infindáveis, nos estúdios de todos os canais, todos eles disciplinadores da opinião. Comentadores, jornalistas, editores e directores de media comprazeram-se em dar notas a quem perdeu e quem ganhou, usando de uma linguagem, de um tom e até de uma gestualidade que até há pouco tempo eram próprios das conversas privadas entre amigos. A indistinção entre o pessoal e o público chegou, em Portugal, ao comentário político mediático.
O esvaziamento da política e a sua substituição por debates decalcados dos formatos e lógicas do comentário futebolístico não foi imposto, no período que antecedeu as eleições legislativas de 10 de Março, por um partido da extrema-direita às televisões portuguesas, como alguns gostam de dizer (lembrando as origens da visibilidade pública do seu protagonista). Não foi sequer imposto pelas «redes sociais», tantas vezes criticadas pelos jornalistas como o lugar onde se desenvolvem as lógicas que o jornalismo se orgulharia de recusar. Foi imposto pelas televisões portuguesas, serviço público incluído, a todos cidadãos que nelas procuraram informar-se. Isto é particularmente grave porque é nas televisões que a maioria dos portugueses continua a informar-se, como as audiências destes debates voltaram a mostrar. Enquanto não são ainda visíveis todos os estragos que o sistema mediático está a causar à democracia, importa compreender porque ocorre esta mudança profunda e quem beneficia com ela.
Em contexto de pré-campanha eleitoral, as televisões mantiveram uma das características mais antidemocráticas que há muito caracteriza a sua informação, agora não tanto (por alguns dias) através da exclusão pura e simples de parte do espectro político do espaço televisivo, mas através da sua presença na programação em condições desiguais de visibilidade e através da sua submersão num mar de comentário estreitado, acantonado à direita («se nos debates foi sensível a argumentos de esquerda, os «comentadores» já lhe explicam como estão errados», parecia ser o lema dos espaços de comentário). Essa característica, todos o sabem, é a falta de pluralismo, de um pluralismo que deve ser entendido, como lembrava o jornalista e professor Fernando Correia neste jornal já em 1999, «como uma abordagem isenta e equilibrada dos partidos políticos, mas também das correntes ideológicas, das camadas sociais, das diferentes regiões, etc.» (1).
A falta de pluralismo já existia no tempo em que o negócio dos media assentava na publicidade, sendo mesmo uma peça fundamental do «consenso sedativo» que facilitou a imposição do pensamento único neoliberal numa democracia jovem, que ainda estava a consolidar peças-chave do seu projecto de justiça social (leis laborais, mínimos salariais, Segurança Social, Serviço Nacional de Saúde (SNS), escola pública…). Hoje, a falta de pluralismo persiste, mas com um novo rosto: adaptou-se a um modelo de negócios dos media que, não podendo já contar com as receitas publicitárias para se sustentar, enveredou por um «jornalismo» cada vez mais reduzido a informação-espectáculo, «conteúdos» fragmentários, imediatos, superficiais, emocionais; E nada plurais. O seu objectivo é agora o «dissenso lucrativo» (2), sem sequer reflectir, e muito menos assumir as suas responsabilidades, sobre os danos que esta viragem causa ao Estado de direito democrático e social.
Empurrar todas as dimensões da informação para as lógicas dos duelos de morte, em busca da mobilização de públicos muito polarizados para o «jogo-espectáculo» em que o debate político é transformado, não tem apenas como consequência o esvaziamento da política. Dito de outro modo, este esvaziamento não significa um vazio de escolhas políticas – apesar de favorecer o aparecimento de uma grande quantidade de «indecisos», no pólo oposto dos «mobilizados». Significa antes que a formação e expressão das escolhas políticas é constrangida e redireccionada.
Com efeito, o jogo de «dar notas» aos representantes dos partidos após cada debate permite reforçar uma narrativa, pré-estabelecida, sobre quem deve ou não governar, quem é ou não «realista» e «credível», quem «quer resolver os problemas» e quem «não os resolve apenas por ideologia», quem «quer mais mercado» e quem «quer mais Estado». Não é ainda o jornalismo de «guerras culturais» a que estes processos têm conduzido noutros países, mas é já um compromisso claro com todas as características do neoliberalismo que está disponível para o ultraliberalismo, seja ele mais ou menos autoritário e conservador. Já é uma negação do confronto democrático entre diferentes projectos de sociedade. Como? Começa-se por invisibilizar e ilegitimizar as propostas das esquerdas que contestam esses projectos; a seguir apresenta-se as propostas neoliberais como ideologicamente neutras, sem se ser questionado sobre as escolhas que encerram; e acaba-se a obscurecer o mais possível a verdadeira natureza do projecto neoliberal com uma suposta luta do «mercado» pela «libertação do Estado», quando na verdade o que nele está em causa é que o Estado reconfigure as políticas públicas no sentido de canalizar cada vez mais receita e recursos das missões sociais (serviços públicos, empresas estratégicas…) para interesses privados (estes sim, subsidiodependentes e protegidos do risco).
Esvaziar a política é também nunca questionar as consequências das tais propostas que apresentam como «realistas» e capazes de «solucionar os problemas» – desde os «cheques-cirurgia» e as parcerias público-privadas na saúde até às reduções fiscais e incentivos a proprietários, empregadores e grandes fortunas. «Meter um golo ao socialismo», como afirmam uns, ou «limpar Portugal», como acrescentam outros, implica sempre, nestes projectos (sejam eles mais ou menos autoritários e retrógrados), aprofundar as políticas que acabam nos cortes austeritários, no disparar do desemprego e da emigração (em particular dos jovens), em crises económicas, em transferências acrescidas de rendimentos do trabalho para o capital e dos poderes públicos para os negócios privados. Implica sempre afastar mais as classes populares, e até as classes médias, das suas expectativas de uma vida melhor, de recuperação de poder de compra, de contratos mais estáveis, de serviços públicos mais robustos, de habitação que possa pagar, de transportes públicos e de cultura acessíveis, de uma transição energética e climática justa.
Mas a narrativa repetida por jornalistas e comentadores nos media é que este caminho, destrutivo para a maioria da população, seria afinal «sensato», «realista» – o «único», até. Tudo o mais são esses «indecisos» para os quais «já não há paciência!; precisam mais do quê, de beijinhos?», ouvimo-los dizer. Tudo o mais são essas classes populares que, em vez do sofrimento social que sentem, em vez de olharem para os projectos políticos que os media silenciam, deviam era votar nos liberais-ligeiramente-menos-extremistas e deixar-se de votos «irracionais» ou, noutra versão, «estúpidos». Sem surpresa, transformar o debate político em jogo e espectáculo não conseguiu manter, ao menos, o que de melhor tem, tantas vezes, «a festa do jogo»: ser uma celebração das classes populares, esse território social tão ausente da representação mediática. Não sobrou sequer a compreensão das suas escolhas, das suas incertezas, expectativas e angústias, mas apenas a irritação e o insulto, os intuitos disciplinadores. Para que nada mude para estas classes, a não ser que seja para pior?"
Sandra Monteiro, Neoliberais e media contra Abril, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, março de 2023.
(1) Fernando Correia, «Concentração “à portuguesa”», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 1999.
(2) A expressão «do consenso sedativo ao dissenso lucrativo» é de Serge Halimi e Pierre Rimbert, em «Um jornalismo de guerras culturais», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2021.
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